13 de dezembro de 2007

1. um afogamento


Não dava, não dava mais. Não dava mesmo. Que fossem pragmáticos, pelamordedelz! Não tinha mais como dar certo e não era por falta de tentativa, conviessem!

“Então tá... Então tá bom, né... Ok!... Hm... eu vou arrumando minhas coisas já... Já tiro tudo daqui... Yeah... I’m already gone” O olhar dócil, bem de viés esperando e quase que impondo uma açãozinha de clemência, um passinho atrás...

Mas não. Conhecia perfeitamente esse olhar! Era bem assim o efeito dele: a gente ficava doendo de compaixão e oferecia um abraço de amigo, que rapidamente já virava um abraço de urso, bem forte, e depois, de jiboia, que prendia todos os membros e deixava a gente sem ar, sem ação, sem nada, prontinho pra ser devorado. E era, se era! Daí, toda a conversa adulta e madura, toda a segurança de um discurso bem articulado, tudo perdia o efeito, porque é claro que esses abraços de jiboia têm alguma coisa que entorpece os sentidos - grandes inimigos do homem racional nessas horas - e a gente acaba inevitavelmente na cama, justamente com a pessoa que já deveria ter dobrado a esquina. Era por isso que esperava que as malas fossem feitas sem encarar olharzinho nenhum. E não iria pra um outro cômodo também,  ficaria ali pra se certificar de que não sobraria nem uma pecinha de roupa, nem um vidrinho de perfume, ou qualquer outra coisa que fosse um pretexto em potencial pra uma visitinha. E rápido com isso que não tinha o dia todo não-senhor!
“Ok, ok... Não precisa ser tão desagradável... Sorry, ok! É que bateu uma leseira... Já fumei uns três agora de tarde... Ãh-hã, mas... You know... preciso de muita calma quando alguém vai me pôr pra fora de casa, sabe... Tem que fumar, né, fazer o que mais...”

Pois é, precisava ficar calmo, que remédio?! Não tinha a menor disposição pra jogar nada pela janela do apartamento – que mico! Daí era melhor apertar um também e fumar enquanto esperava. E foi o que fez... Deu um tapa... Forte... Soltou, tossiu. Tossiu... tossiu mais. Respirou... Outro trago... Respirou... Mais outro. Ofereceu a vez, que não foi aceita. “Tou bem já...” Certo, continuava fumando então.

E ficava olhando aquela pessoa arrumando roupas lentamente... Separando o que estava sujo do que estava limpo... Abrindo uma grande mala... Separando as calças, guardando no fundo... Alisando com a mão – “Não gosto que amassem...” - ... E, de repente já não era mais uma pessoa. Não era não, olha só, era uma figurinha... Estranha, tão delicada, tão delgada, tão branca... Gostava daquela malemolência toda, era como a fumaça de um incenso, ou como o leite no percurso entre a caixinha e a caneca... Era assim talvez: se o incenso fumaçasse leite, seria igual àquela figura. Nossa, tão delicada! Coisa linda... linda... Muito linda! Era o jogo nas munhecas que ele gostava mais. Nas munhecas e no pescoço, uma elasticidade, todos os movimentos tão redondos e lentos... Muito bom de se olhar, encantador mesmo. E não deixava de reparar também nos movimentos da cintura, dos ombros, do queixo, dos dedos. Ah, meldelz! Não tinha a menor dúvida de que era aquele o corpo que mais lhe tinha dado prazer em toda a vida... E era difícil, muito difícil se desfazer de uma coisa como essa... Porque desejo é aquela coisa... cala fundo na alma da gente e ainda tem a natureza fácil de se entrelaçar ao amor e à paixão e daí... Daí é o melhor sexo que se pode ter, o que mistura desejo, paixão, amor e um pouco de raiva, pra o jogo ficar mais interessante...

“Hey! Tá viajando, ãh?” Olharzinho de novo, vozinha bem baixa, bem de veludo.

Esteve, mas não estava mais. Sabia que se continuasse nessa divagação, o tal olharzinho surtiria o efeito certo e era isso o que ele menos queria. Tinha de raciocinar, de fazer tudo certo dessa vez, bastava de perder a cabaça... Mas olhava e permanecia olhando... Tinha era de dar um jeito de afastar as metáforas, que amor, amor e paixão e coisa e tal, tudo isso se funda muito em metáforas. Era melhor traduzir a cena numa fórmula, uma formulazinha redutora. Vamos lá: leite + fumaça de incenso + jogo na munheca = desejo + processo de falência autosustentável. Precisava atinar com isso... É, não podia esquecer mesmo, olha o perigo! Imagina só! Se bem que podia se enroscar só uns quinze minutinhos, tipo um bota-fora, alguma coisa assim... Mas não, mas nada! Porra nenhuma!!! Não podia de jeito nenhum, nem pensar em pensar em...

“Você gosta de me ver né?... O lamentável disso tudo é a gente não poder se ver mais porque eu também gosto que você me olhe...” E tirou a camiseta. Que não tirasse não! Já tinham falado disso! “Take it easy! Vou só trocar... Vou... pegar uma limpa... eu dormi com essa aqui ontem...” Espreguiçou... Espreguiçou devagar... Alongando... Alongando bem a silhueta esguia... Esticou o queixo e até os dedos, que nem gato faz quando acorda... E se recompôs, também que nem gato... E passou a cara pelo ombro, também que nem gato... E olhou de viés outra vez, também que nem gato... E tínhamos então um gato perfeito. E também mais uma metáfora. Parasse com aquilo. “Isso o que?” Sabia, sabia sim. “Para você...”

Fechou os olhos com força, a essa altura estavam secos, mau efeito da maconha. Antes de tornar a abrir notou que sentia o cheiro de um perfume fresco muito mais próximo que antes... Teve medo de abrir os olhos e constatou que estava retardado por ter fumado demais. Teve medo... Teve vertigem... Sentiu um hálito no pescoço... “Cê é mais alto que eu... dá pra pegar a outra... mala lá em cima?” Não quis responder... Não quis abrir os olhos... Estava muito perto, perfumado, sem camisa, só com aquela calça-jeans justinha... “Cê tem medo de mim?... Fica não... É bom...” Sabia... Ah, como sabia! Mas não dava, tinha de ter juízo, pelamordedelz, não tinha mais como! “É só hoje...”

Quando por fim abriu os olhos, já era muito tarde porque o perigo maior estava bem ao alcance da boca, úmido e quente. “Me beija...” Não teve jeito, beijou. “Me beija de novo...” Precisava que ele entendesse que já tinha acabado, que não podia ser, que não eram os homens certos um para o outro... “Me beija de novo...” Beijou... Deixou-se abraçar forte, forte, forte... Sentiu sufocar... E por quase um minuto esteve perdido à deriva em alto mar, num tipo de narcose que antecede o afogamento.

2. a brisa pelas pedras


“Jac, eu não quero ouvir isso... por favor, não. Não ouse, nem mesmo pense em me dar alvará pra um relacionamento paralelo ao nosso casamento. Não mesmo!” Tinha a cara vermelha e muito vermelha. Não dava pra saber se de raiva ou de vergonha, mas ele bem que queria adivinhar. Na verdade queria era saber se toda a tensão era por ele estar abrindo mão da exclusividade do corpo dela (e seria o caso de raiva) ou se tinha adivinhado um desejo muito íntimo dela (e então, estaria com vergonha). Pensou em perguntar... Quis perguntar ardentemente! Mas o ardor passou em coisa de segundos, o que não passou foi o sadismo que sentia em ver a mulher toda alterada com assuntos de ordem pessoal... Gostava, adorava!

Mas achava um sadismo amoroso, quase saudável mesmo... Porque gostava dela, gostava muito, queria dar a ela tudo que ela quisesse. Mas ela não gostava de ficar alegre, nem de ser feliz, nem de se sentir livre... Nada, nada disso ela queria, tinha muita certeza. Não tinha como ser muito doce, muito gentil e coisa e tal... Tinha de ser cínico e sarcástico quase todo o tempo, tinha de fazê-la sentir-se exposta, confusa, com medo... pra ela nunca ir embora. Sabia perfeitamente que esse não era o casamento dos sonhos e quando pensava na história toda, chegava a se achar muito cruel mesmo... Mas era difícil, as coisas iam saindo do controle sem que se soubesse exatamente por qual processo, não havia muito jeito de conter. Ficou gostando dela um dia, bem assim: acordou e entendeu que já se importava em demasia pra vê-la chorando e não tomar nenhuma providência, pra bem ou pra mal. Então ficou decidido que daria um jeito de dar a ela tudo quanto precisasse, mesmo que fosse alguma coisa moralmente pouco fácil de tolerar. Era nesse pensamento que estava quando não resistiu mais, armou uma cara bem cretina e desferiu a pergunta à queima roupa, se tinha vergonha por estar a fim do outro ou se tinha raiva pela falta de ciúme.

“Olha, Jac, francamente...” – a cara já não estava tão vermelha. Fazia longas pausas pra falar, devia estar procurando um bom argumento pra resposta – “... francamente... Eu... eu na verdade nem sei o que dizer a respeito disso...” e sorria.

Boa! Boa fuga! Era mesmo impressionante a capacidade que ela tinha pra se desembaraçar. E ainda poderia afirmar com toda a “franqueza” (ela adorava essa palavra!) que estava confusa, que não tinha juízo formado e blábláblá, escapando permanentemente do incômodo e sendo honesta, o que era pior. Achava aquilo completamente irritante, mas era uma sensação muito gostosa de sentir, quase como tentar aparar uma brisa com as mãos e não conseguir, mas gostar por ter sentido o vento alisar pele: essa era Livi, uma brisa fugidia.

Mas tava legal, por essa ela passava. A questão era que essa coisa de ela ser tão boazinha, tão altruísta, tão abnegada... ah, isso não parecia muito saudável não. Não era saudável não senhora! Tinha que parar com isso, mas onde é que já se tinha visto uma coisa dessa? Então ela ia morar com o pai por consideração à mãe, se casava sem amar por consideração ao pai, se privava de ter um caso por consideração ao marido... E quando iria se considerar a si mesma? Nunca? Nunca, né? Se não, perderia a definição enquanto gente, né? Não era isso não? “Não, querido, tá enganado...” Enganado o-caralho! Tinha sim essa vocaçãozinha pra heroína romântica, essa coisa brega de ser problemática e suprimir os próprios desejos por um bem maior, toda mártir. Acordasse, porque a vida ia passando e ela, tadinha... “Mas o que é que você sabe do que eu quero, Jac? Pode me dizer?” Talvez não pudesse dizer mesmo, achava que não, mas tinha certeza de ela não seria feliz se não fosse obrigada por outra pessoa, essa era sua dinâmica... E pra completar, que a queridinha não tentasse e nem pensasse em lhe dizer o que fazer ou lhe proibir qualquer coisa que fosse, que guardasse as proibições pra si própria.

A verborréia devia ter deixado a Livi muito cansada porque não respondeu e foi tratar de fumar antes das últimas palavras do Jac. E ele olhava seus movimentos lentos e descuidados e distraídos e aéreos... Ela quase que flutuava pelas escadas, não se ouviam seus passos pelo piso de madeira, não se via realizar curvas fechadas e sempre, sempre deslizava um dedo pelas paredes enquanto passava, o que provocava um ruidinho que se confundia com o de sua respiração. Todas as vezes que a via passando, Jac se certificava de que a amava e então tentava se lembrar o que nela o havia seduzido; nunca sabia dizer, eram sempre muitas razões diferentes e nenhuma ao mesmo tempo. Foi a única mulher que teve de verdade, talvez fosse a única até o fim da vida – a ideia era essa desde o princípio, só não entendia porque no fim de tudo era tão escravo, se nem ela mesma reivindicava seus sentimentos. Cansou-se de pensar nisso também e achou muito apropriado a Livi lhe ter oferecido o baseado, porque queria descansar, pensar um monte de bobagens, jantar e até fazer sexo, com um pouco de sorte...

Nesse momento, o Jac acaba de permitir abertamente o trânsito da Livi pra muito além do alcance de sua terra e ela vai parar em alguma altura do oceano, longe, perto de alguém que viria a ser a mais arrasadora paixão de sua vida. Mas ele ainda não sabe disso, ele ainda não sabe de nada. Sabe só que precisa relaxar e dar um jeito de a Livi ficar bem boazinha com ele, o que provavelmente daria muito trabalho naquela noite...

3. as pedras


Eram seios épicos, dignos de toda uma epopeia, quase um imperativo para o olhar. Não dava pra se desviar deles, nem sendo bicha. Na verdade, gostava muito dos seios das meninas, mas só quando eram grandes assim, que nem os da Livi. Nunca olhava com desejo, era mais o prazer estético mesmo, ver uma coisa linda e feminina e redonda e macia... Era isso. Achava as mulheres coisas muito lindas de se ver e muito raramente se sentia impelido a tocar em alguma – precisava de muito estímulo pra querer. E bem no fundo, mas bem lá no fundo mesmo, gostava de ter um olhar das mulheres que os outros homens não tinham... Essa coisa de não ver mulheres como se vê carne o agradava bastante, dava a sensação de ser bem civilizado e moderno e elegante e o Jac gosta muito de tudo isso...

“Tudo bem com você, menino lindo?” ela perguntava sempre sorrindo e vinha até ele passando o dedinho pela parede. Sim, estava bem e melhorando, muito contente em vê-la ele havia ficado. Conversaram sobre qualquer outra coisa bem sem importância: ela desviava os olhos em várias direções enquanto ele a olhava muito fixamente... Gostava dela em seu modo de falar e andar e rir. E ela adorava jazz, meldelz, uma moça tão novinha que gostava de jazz, olha só! Muito inteligente e sabida das coisas, como uma tia gostava de falar. Bonita, quase linda, com aquela carinha estranha onde olhos era muito maiores do que nariz e boca. Tinha uma simpatia irresistível por ela... era sim... Como era? O que havia dito por fim? Desculpasse, esteve desatento...
“Nada demais, Jac, uns problemas de grana, pra variar... Tou meio encrencada...” Um sorriso azedo que doía! Mas era coisa muito séria? Era de muito dinheiro que precisava? “Puta!!! Uma quantia tamanha que nem cabe na minha boca pra eu falar dela... A sifra podia ser em dólar, pra você ter uma ideia...” Fechou os olhos com força e os abriu novamente... Entortou a boca e respirou fundo. Nossa, mas em que encrenca ela havia se metido afinal? “Vix, história chata e bem demorada... Coisa antiga... Te conto depois porque tenho que entrar pra trabalhar, né, chefe?!" Riram, era chefe porra nenhuma, parasse com aquilo. Riram de novo, estava certa, precisavam entrar que ele tinha uma pilha de petição pra escrever e ela outra pilha para revisar.

Queria na verdade ter ficado com ela pra saber o que estava acontecendo de tão sério, ela estava com uma expressão leve mas não julgou que estivesse realmente tranquila. Mas realmente, não era chefe dela pra se dar ao luxo de dispensá-la... Muito embora devesse ser e seria! Seria se não fosse aquele velho filhodumaputa que era o maior sócio do escritório e pai-carrasco ao mesmo tempo, o filhodaputa! Filhodaputa sim, mil vezes, filhodaputa! Tava acabando com a vida do Jac com aquela historinha estúpida de casamento... Absurdo! Ter que se casar pra conseguir uma coisa que trabalhou muito e muito mesmo, a vida todinha, na verdade, só trabalhando em função disso e o velho vinha com aquela conversinha patriarcal e antiquada de casamento. E o escritório era dele!!! Não tinha nada a fazer a não ser obedecer e ficar no lugar do desgraçado ou ser empregado pro resto da vida e conviver com a certeza de que havia jogado um tempo precioso da vida no lixo. Agora tinha plena consciência de que seu pai tinha simplesmente lhe roubado a adolescência! Estudava feito um desesperado porque o velho se recusava a pagar um cursinho e trabalhava porque tinha de “aprender a dar valor ao dinheiro e ao trabalho em si também”: “você só é um ser humano de verdade se pode viver pelos próprios meios, João Carlos”, foi essa a sentença que o velho deu, trabalhar mesmo sem precisar, ou melhor, trabalhar principalmente por não precisar. Mas tava certo, acabou que tinha se acostumado muito com trabalhar e nem se imaginava vivendo feito playboy... Havia se tornado um viciado em trabalho ao fim das contas, principalmente depois de ver que seu esforço gerava grandes progressos, mas olha só que lindo! Tinha começado como office-boy, depois estagiário, depois advogadinho e agora era advogado fodão, muito considerado. Mas não estava na droga da sociedade porque não era casado, porque não tinha mulher, não tinha família, não tinha moral. Tínhamos aí o problema de ser gay e escolher uma carreira convencional orientada por papai, papaizinho com uma cabecinha de século XIX a mula-empacada-maldita-filhadaputa, sempre tão duro, sempre impedindo seu caminho! Já fazia quase três anos que estava nessa situação de sinuca de bico, sem ter como resolver... E não tinha jeito, gostava de namorar homens, não queria muito arrumar uma namorada, principalmente se fosse uma dessas meninas bonitinhas e burrinhas e espertinhas e que são doidas por carro e grana e vão se virar pra arranjar um caso com o instrutor da academia na primeira chance... E mesmo que conseguisse uma garota legal, nem lembrava mais do que se deve fazer com uma mulher, nenhum ânimozinho, ia fazer uma coitada infeliz. Era desanimador pensar em tudo isso e tanto que já se tinha esquecido o motivo que o levou a reconsiderar – pela enésima vez – toda essa ideia do velho pai. Não se lembrava agora de que queria ajudar sua amiga, Jac estava mesmo envenenado de raiva e completamente cansado e achando que já passava da hora de deixar a tal pilha de petição em dia.

4. a brisa e a parede


O álbum com as fotos do casamento demorou a ficar pronto muito mais do que se imaginava. E ela nem sabia direito porque queria tanto ver essas fotos prontas, mas se pegava pensando nisso distraidamente várias vezes. Talvez fosse pra ver com os olhos como era ser casada, porque sua cabeça e seu sentimento não estavam processando essa informação de forma alguma. As coisas foram acontecendo muito rapidamente, como num romance em que os fatos narrados são tantos que no fim o leitor não se lembra mais de como tudo começou... Perdida e atropelada pela própria história, mas que coisa curiosa. Mas deixava pra lá, deixava... Agora estava largada no lindo sofá de casa e virava as páginas com fotos. Havia usado um vestido simplesmente obsceno na cerimônia civil e na festa, mas não sem protestar muito; o Jac tinha desenhado o modelo e mandado um bom alfaiate costurar: nada mal, conceitual, mas muito provocante. E provocação foi o termo pra aquele casamento, a palavra de ordem do Jac. Era o trio de jazz em vez do quarteto de violinos que o sogro gentilmente se ofereceu pra pagar, era aquele vestido decotadíssimo em vez do modelo singelo que a falecida sogra usou e que o sogro tão gentilmente se ofereceu pra ajustar, era a nata da comunidade gay paulistana presente em vez das pessoas que o sogro tão gentilmente se ofereceu pra convidar e tudo o mais, da comida à tapeçaria. Tudo exaustivo demais pra ela, que estava no meio de um fogo cruzado entre o noivo e o sogro e o que era pior: não tinha podido optar por nada, teve a voz silenciada o tempo todinho. Mas deixava, deixava pra lá sim... Deixava porque o pior , o que havia de mais grosso já tinha passado e havia sido certamente a tomada de consciência das consequências envolvidas naquela escolha. Então... então, examinando bem, era alguém entre a Margarida d’A Dama das Camélias e a Paulina d’O Jogador, era essa a Olívia-do-João-Carlos. Sim, era dele, era propriedade privada dele, pela qual ele havia pagado muito e muito caro e reformado depois da compra, mulher com valor de uso e troca e coisa e tal, partindo quase que pra o fetiche e instrumentalizada, pra completar. Nem acreditava quando formulava assim, parecia estar pensando sobre outra pessoa, nunca sobre si. Mas era a si mesma que estava vendo nas fotos, estava ali, impressa, indelével, inegável. O caminho até ali tinha sido muito confuso e francamente, francamente, não se lembrava dele todo, mas sempre tentava (a gente nunca pode se esquecer do fez a gente ser o que é...). Então revia: o Jac era um conhecido do trabalho e da academia... Era um cara que nadava em grana, coisa que ela nunca teve na vida e com que nunca se importara... Era a doença do papai e a notícia que só se operava nos Estados Unidos... Eram todas as tentativas de empréstimo bancário negadas... Era o Jac, muito bicha, precisando se casar urgentemente pra se dar bem com o pai dele... Era uma proposta indecorosa feita sem pudor e à-queima-roupa que foi aceitando sem pensar muito ou impor condições. Era esse o resumo da história, mas não a história toda... O que tinha feito, meldelsdocel?! Nem havia lhe passado pela cabeça que se tratava de casamento mesmo e não de um trato de aparências, bem novelesco... Nem lhe havia passado pela cabeça que seria a mulher do cara, que dormiria e acordaria com ele todos os dias... todas as noites. Não entendia até agora como tinha se esquecido completamente de perguntar ao Jac se aquele casamento se basearia no sexo, como quase todos são... Não se havia lembrado de perguntar só o mais importante, tomou conhecimento que sim dois dias antes da cerimônia, enquanto provava o vestido de noiva... Ela envergonhada, vestida como uma puta de luxo em leilão de jóias e ele completamente siderado por aquela imagem que, na verdade, ele mesmo havia criado. “Você tá uma diva... Nem eu acredito que tudo isso é meu... – tomou um folegozinho – Aliás, tenta aproveitar sua despedida de solteira porque depois... Cabou a farra!”, isso foi a tensão da história, foi o tapa que a acordou de um transe em que estava já fazia alguns meses... O Jac era mal-e-mal um amigo e agora, maridão, olha só. Teve raiva dele no começo, achou que ele tinha obrigação de ter esclarecido essa coisa estranha de eles dormirem juntos, teve muita raiva, porque ele era gay, caralho! Ele era gay, por que é que tinha de tranzar com ela? “Mas eu nunca falei que não tranzaria, você deve estar louca...” Realmente, nunca disse, mas por que tinha que ser assim, porra? “Me dá um bom motivo pra não dormir com a minha mulher? Ela não quer? Foi se casar por que então? Pelamordedelz, né, Olívia! Te escolhi pra casar porque você não é vulgar que nem as outras meninas que eu conheço, não vai me dizer que você só tá a fim da grana mesmo! Não, nem responde que eu sei que sim, mas se é isso mesmo, problema seu”. O Jac era assim, ia sempre direto ao ponto, uma gracinha, não! Mas deixava pra lá sim... Também, nem ligava muito pra sexo mesmo... Nem ligava... Achava que não pelo menos, mas já nem sabia mais... Fato era que passados dois meses de convivência com ele, não se importava de verdade.

5. a brisa do mar

Vivia

.........vagando

[em qualquer] via

[porque não].........via

....................................Lívia


Tragou, pigarreou e concluiu: terrible... Estava infame na verdade, ela nunca ia gostar de uma coisa dessas. Tá certo que também não ia ler mas se era sobre ela devia ter o jeito dela... As cores dela...Os olhos dela, um azul noturno tão indescritível, qualquer coisa assim, meio onírica... E todo um verde invocado pelo nome dela... Really really bad! Ela era crítica literária, era uma vergonha escrever uma coisa assim em nome dela! No fucking way! Toda ela indescritível... Toda ela escultural, toda movimento e dança...
Olívia. Gostava de falar o nome dela mais e mais a cada vez. Gostava de Ls e Vs e As, que são as letras mais femininas... Preferia Liv, era como a chamava. Mas sozinho, sozinho no quarto à noite por entre brumas verdes embriagantes, repetia muito Olívia, mesmo sem gostar do O inicial.

A primeira vez que viu Olívia não viu Liv e não viu nada: estava bêbado com a própria imagem sendo aplaudida por tanta gente e teria se atirado energicamente em quaisquer braços sorridentes. A primeira vez que viu Olívia não viu Liv e só viu Jake, muito sexy, que mandava uma rodada de margarita pra sua mesa e um sorriso. Sea tinha gostado do Jake, tinha sim, achado ele um tesão. Mandou um convite pra uma aula de dança contemporânea, sabe, pra agradecer a gentileza do drink, mas quem apareceu foi a mulher que ele levava à tiracolo.

A segunda vez que viu Olívia não viu Liv, só viu medo, parecia uma mocinha reprimida em demasia, tinha que ensiná-la a se distender e deu-lhe uma aula de alongamento, recomendando que ela voltasse, que gostaria que dançasse com ele e ela sorriu.

Na terceira vez não viu Olívia, já viu Liv... E houve mais dia nenhum em que não pensasse nela no instante de acordar e também uns minutos antes de cair no sono, até o fim de sua vida.

E realidade era que ela não merecia um poema tão infame! Mas as malditas mãos ficavam trêmulas, não escrevia nada que prestasse daquele jeito. Tragou novamente e tossiu. Girou o baseado pelos dedos, era hábil com isso... Gostava de ver a fumaça subindo em espirais por seus dedos e imaginava a mão em chamas internas... Sentia cansaço, a respiração estava um pouco difícil...

Não, ia mostrar nada a ela não, ela ia ficar meio convencida, ia ter certeza da Verdade absoluta desse momento e ia acabar a graça... A graça, todo mundo tem uma, a dela é a hesitação e a insegurança. Toda assim era ela, de andar vacilante, de beleza contestável, de olhos inquietos, de boca que ensaia o que dizer antes de se abrir. E insegura ela se apaixonaria mais fácil... Ah, ela ia ficar gostando dele sim, a menininha, in one way or in other... Não sabia bem ainda o que ia fazer quando ela gostasse, mas ia ficar feliz... E ia dar um jeito de deixá-la contente também.

Rasgou o poema, achou melhor escrever uma melodia, uma melodia, isso a traduzia melhor, melodia fugidia... Melodias vagueiam pelo ar... Tragou forte, prendeu a fumaça e tragou novamente... Teve uma queda de pressão, pensou em se sentar ao piano, mas deitou-se, adormeceu.

6. marola

Era tão desagradável e feio o costume que as pessoas tinham de especular sobre a vida de outras! Tão feínho, mesquinho... atozinho bem –inho mesmo! Look at this! Olha a cara da Noemi, tão bonita no geral, ficou ridícula com essa boquinha nervosa indagando coisa que ele não ia responder...

“Vocês tão saindo, Sea? Tão tendo um caso? Fala logo, deixa de ser besta!” Fuck!!! Não falava, só fazia que falava... Saíam sim, claro... Iam pra casa juntos depois do ensaio... Iam à pé... Menos se chovia, se chovia iam de carro. Suspirou longamente, entediado demais! We are the dead, don’t you think? Hm... Seria lindo uma luminosidade diferente naquela sala, a luz fria feriam os olhos do Sea, eles até lacrimejavam... Alguma coisa amarela ou azulada talvez... Uma réstia de luz amarela a dourar os olhos dela... Sol ao pôr-do-sol... Amarelos eram os raios nos cabelos da Liv... Não gostava de nada dourado, só pele... Seu cabelo era dourado e ele vivia pintando porque achava uma cor difícil...

“Sea, será que você tá prestando atenção no que eu estou te falando? Tou falando com você, ô viajante!” Fuck!!! A voz da Noemi era estridente quando queria chamar atenção! E ele estava entendendo perfeitamente o que ela dizia, muito embora não respondesse. “Então por que não fala nada?” Não queria. “Tá, tá bem, quer que eu te deixe aqui sozinho, mala do caralho?” Não, ela podia ficar. Podia, o Sea não expulsava ninguém. Sorriu apenas com um lado da boca, era seu hábito pra situações em que tinha de sorrir mas não tinha vontade. Parecia um pouco cínico, sabia, treinou bastante essa expressão diante do espelho. “Mas... só pra saber, você tá a fim dela, não tá não?” Ah... Encrespou os lábios, apertou os olhos, girou molemente a mão, queria passar ideia de descaso... “Mais ou menos? É paixão ou tesão só?” Ah... Ah... Paixão sempre! Havia sido apaixonado por quase todas as pessoas que passaram por sua vida. “Mas vai rolar sexo nessa paixão?” God damn it! Oh... Noemi, Noemi... Ficasse calma... Virou-se subitamente e chegou com o corpo bem perto do dela, o rosto bem perto do dela, de forma que se pudesse sentir qualquer expiração. Tocou o dedo no queixo dela e armou uma cara muito sensualizada. Estaria ela querendo saber de sexo por que? Queria fazer? Estava precisando, era isso? Ele podia dar um jeito nisso... “Ai, Sea, mas que merda! – estava nervosinha agora – Deixa de ser oferecido, nojento! Fica o dia todo falando dos seus namorinhos pra todo mundo e vem com palhaçada quando eu pergunto!” Ria, ria baixinho. I just have nothing to say, you know… Sabe-se dele o que ele quer que se saiba e do jeito que ele quer, muito deselegante ser perguntado sobre sua vida íntima. I’ve got to much to hide, Sea sempre tinha uma reticência pra dar como resposta quando não queria falar. “Foda-se você então, Siegfried! Vamos logo treinar que eu tou ficando sem saco com você. A propósito, você não fumou não, né? Vai ficar com essa cara de passado no ensaio não, né?” Confirmou em silêncio, sorrisinho. “Tem que fumar menos maconha, viu!” Okay, se lembraria disso oportunamente. Por hora estava pensando numa sequência bem chata e repetitiva pra passar pra ela... Queria acabar com ela, de tanto cansaço, só pra retaliar... “Bem filhodaputa o senhor, né?” Afetou uma voz grave: “This is me, honey… So… Let’s dance!”.

E o Sea realmente se vingou da curiosidade da Noemi como queria.

12 de dezembro de 2007

7. o vento e as ondas

...Olívia sabia que já não era mais o narrador da própria vida. Não era mais...
“You just can’t relax...” Desculpasse, estava pensando em tanta coisa... “So don’t! Just relax!” Tinha que tentar... Não entendia bem a razão por que tinha de estar relaxada, era apenas um rascunho de escultura. Mas se o Sea dizia, era que tinha de ser. Se bem o conhecia, dali a pouco ele seguraria seu rosto entre as mãos (aquelas mãos tão lindas!), fecharia os olhos, tornaria a abrir e tiraria dos dentes um barulhinho sibilante, ordenando que ela se acalmasse. Pronto, já acontecendo: “Schssssssssssssssssssssssssssss...” As mãos dele eram quentes e longas e estreitas e imperativas, ao menos com a Livi eram assim... Não importava o que ele queria fazer com ela, se ele pousava as mãos, era obrigada a obedecer. E agora, ordenava que descontraísse os músculos, mas ela estava de fato muito tensa e não sabia como faria.
“É o seu marido-viado que te deixa assim nervosa, é? Okay... vamos ver... vamos ver... Ah...” Na verdade era o Jac sim mas era por causa do trabalho que... “Schsssssssssssssss... Tira o resto da roupa... Isso, a calcinha também... Calma, não fica vermelha...” A Livi não sabia o que fazer, sentiu uma fisgada forte nos ombros e uma onda de calor e eletricidade saindo do estômago e lhe encharcando todo o corpo, respirava com dificuldade. Estava com o juízo suspenso e não sabia bem como se comportar, confusa, confusa, confusa, mas o que era que havia ali? Queria muito saber o que se passava pela cabeça do Sea... Lidar com ele era como se lançar no oceano sem bússola, ele não dava muitos sinais de suas intenções como as pessoas normais faziam... E havia se acostumado ao João Carlos, um cara totalmente claro, totalmente transparente e tão sólido...

Mas começou a relaxar mesmo... Ah, era tão bom... Não havia notado, deixou de prestar atenção, mas já estava nua, deitada... e o Sea passava as mãos por toda a extensão de seu corpo, com firmeza mas sem força, sem hesitar e sem nenhuma sensualidade expressa. “Parece que o vento esculpiu seu corpo...” Quase não ouviu, tão embriagada que estava com aquela carícia macia... quente... Derretia, derretia toda e as mãos dele a recompunham e modelavam e passeavam por ali e por lá... Seus lábios se encheram de sangue, os seios endureceram, era um desejo animalmente intenso que sentia agora... Teve vergonha, mas não quis pensar nisso por hora, preferia deixar sua pele numa entrega passiva por todo tempo que fosse possível – “não está acontecendo nada, não tenho que ter medo”. Simplesmente se abandonou... Os pelos do corpo se ergueram em resposta automática a um toque na coxa, ela arfou... e ele percebeu. Percebeu – “Droga!” – e deixou isso bem claro, acabou com o transe imediatamente: o filhodaputa teve a cara-de-pau de lamber a ponta do indicador e percorrer com ele o espaço entre os seios, tudo muito ligeiro. Mas o que era aquilo!? Foi o que disse, mas os olhos queriam saber se ele a queria também e continuou quase sussurrando: “Por que é que você se sente tão à vontade em pôr as mãos no meu corpo?” Voltou a estar tensa, a boca seca, os ombros de aço, não conseguia olhar a cara dele e se lembrava de uma novela que havia lido, “uma coisa é buriti outra é buritirana”. O ar ia ficando muito rarefeito, sem ventilar nada nada, muito ruim de respirar. No final, não tinha gostado de dizer nada daquilo, nunca era bom falar nessas horas.

Nunca era bom falar nessas horas e, bobeando, o Sea sabia disso porque em vez de responder lançou os olhos aos dela, até que ela olhasse de volta. Depois, piscou bem lentamente, inclinou a cabeça um pouco e sorriu, rolava os dedos uns pelos outros, parecia uma menininha arteira, mas de um instante pra outro parou com o dengo e a encarou com um sorriso bem sério, desses que dão firmeza pra gente, e era assim que lhe dizia: ela era bem sua, era bem sua mesmo, tinha nada que ter vergonha de estar nua.
Mas nada, nada disso. E se estivesse enganada, ia saber? Uma coisa é buriti outra é buritirana, essa era só uma das leituras possíveis pra o olhar do Sea. Não tinha como saber. Mas sabia que era dele agora... e que tinha mais um motivo pra achar que já não estava mais narrando a própria história. Sea lhe oferecia a mão para que se levantasse e um hobbie. Oferecia uma atmosfera praieira e a voz mais reconfortante “Such a perfect day... I’m glad I spent it with you...” Gostava dessa música. E ele sabia? Sabia como? Ela nunca havia... Ah! Era a cara dela? Era mesmo? E por que? Não falaria? Que chato!!! E quando ficaria pronto o trabalho? Queria ver... Só na exposição? Como assim, que grosseiro! Era ela a modelo, porra! Tinha que deixar ver sim senhor, se não ela não pousaria mais. Seria, seria uma pena sim, ela também achava, mas fazer o que, não? Hahaha! Precisava voltar, voltar e estudar um pouco. Podia sim ir ao ensaio, embora estivesse um pouco cansada. Não se incomodava em ir não, maneira nenhuma. Ele iria, não? Então estava bom... Estava com cara de chuva lá fora, achava que não voltaria à pé com ele não, chegaria encharcada. Mas era bom que chovesse, o tempo estava muito seco, muita poluição...

“Às vezes você desembesta a falar umas coisas que não tem a ver com você e não significam nada... É querendo dizer outras que você faz isso, não é?” Nossa, mas que coisa, o Sea tinha mesmo que procurar entrelinhas em tudo por que? “Oh, sorry!!! Se não é isso é o que esse blábláblá? Você tá stressada, Liv? Tá parecendo...” Sim, estava. O Jac... Ele a enlouquecia quando queria... “Ah, é isso... Esse cara... Mas que homem você foi arrumar, hein!” – bem sarcástico. Ah, o Sea devia estar de sacanagem! Ela não arrumou nada, ela foi arrumada pelo João Carlos. “E como é que vocês tão?” – pra falar dessas coisas o Sea ficava todo sério, ela se sentia quase num divã. Estavam do mesmo jeito, ele mandando, ela contestando no começo e obedecendo no final. Era sempre assim. Ele vinha dando pra encher o saco por causa de trabalho agora. Nunca nada do que ela fazia era bom o bastante, ele tinha sempre que chamar atenção, que corrigir alguma coisinha, perfeccionista pra caralho! Era foda! Enchia demais o saco! Daí chegava e achava que tinha que ficar tudo bem em casa, que não tinha que levar stress de trampo pra cama e que uma-coisa-uma-coisa-outra-coisa-outra-coisa, que não tinha nada que ficar de mau-humor por aí... “Sei... sei... E, deixa perguntar... Depois desses discursos ele quer transar também, é?” Ah, nem sempre, mas em geral sim. Muitas vezes sim. “E você deixa ele transar com você, suponho...” Muitas vezes não. “Então tem vezes que sim, é isso? Conta pra mim!” Ele sabia que sim. “Mas me conta, querida, como é isso? Você gosta?” Era claro que não gostava, mas às vezes acabava cedendo por uma razão ou outra. Mas que curiosidade mórbida aquela! O Sea estava sorrindo grossamente, meio cínico. Provavelmente sabia que ela se desconfortava falando de sexo e perguntava de propósito. “Escuta, Liv, tem alguma vez em que você goste de dar pra ele?” Mas que porra era aquela!? Que grosso! Era dela que ele estava falando! – na verdade, estava mais tensa do que envergonhada com o vocabulário, mas não queria transparecer, embora achasse que não conseguia. “Não precisa esquentar, Liv, pode falar numa boa... Juro que não vou te chamar de mal-comida” – sorriu fazendo cara de bonzinho, o filhodaputa – era claro que ele havia notado a tensão. Ficava antipático com aquela cara. “I’m just tryin’ to be your friend…” Certo... certinho... Depois falariam disso então... “Você deve ficar mal com essa história, ãh?” Queria saber? Deixava, deixava então, estava bem, já o conhecia o bastante pra saber que ia insistir no assunto até ter uma resposta. Estava bem, tinha vezes que ela gostava sim de ficar com o Jac, mas era claro que tinha, porque se nunca gostasse de nada, se nunquinha gostasse de nadinha, depois de sete meses de casada já teria tentado suicídio, mas era claro que já teria. “Sei, sei... E em que condições você gosta?” Em que condições? Perguntinha capciosa, não! Ele fazia sinal afirmativo com a cabeça, sempre, sempre sorrindo. Bem... Não sabia exatamente qual era a química certa pra ela gostar do Jac, mas cachaça ajudava bem... E às vezes, quando estava com muita raiva... Ah, deixasse pra lá, estava atrasada. Até depois! “Como até depois? Espera aí, me conta isso direito! Espera... Tá fugindo mesmo? Tudo bem, Lívia, você me paga! Me dá só um tempinho pra pensar no que fazer...” Nada, ia antes que ele retaliasse. Foi-se embora sem beijinho de despedida.

8. fissuras

Havia nove noites vez que não conseguia ter uma noite de sono que prestasse – dormia menos que quatro horas e por isso andava trêmulo, muito irritadiço e também meio choroso. Havia quatorze dias que passava mal com quase tudo o que comia, exceto pão – uma queimação no estômago violenta e nojentíssimos refluxos que já não se curavam com sal de frutas nem com leite de magnésia. Havia também quatro semanas que não trepava e isso era um sério complicador pra um cara como ele, que sempre viu sexo como uma necessidade biológica tão básica quanto comer, mas isso era parte da causa dos seus problemas e não um sintoma...

Jac estava achando que precisava mesmo era de um bom analista, precisava de terapia, tinha de falar com alguém urgentemente. Precisava descarregar o peso que o trabalho acumulava na sua cabeça, porque estava foda! Era muita, muita coisa acontecendo. Andava procurando resolver problemas judiciais de um cliente antigo que só complicava a situação mais e mais a cada vez e cobrava resultados rápidos o tempo todo. Esse cara, era obvio, não ia nada com a cara do Jac e se queixava pra o velho pai sobre a ineficiência do filhinho dele – só não chamava de viadinho porque se o casamento com a Livi era um fracasso, servia pelo menos pra calar a boca de cretinos como aquele, mas era certo que o escroto queria muito chamar de viadinho. Puta saco! (Neuroticamente o Jac não queria acreditar que uma opção sexual, que estava mais pra condição do que pra opção, podia gerar um estereótipo que interferisse tanto no seu trabalho a ponto de perder o respeito, muito embora soubesse que era assim mesmo, que vivia no Brasil e no Brasil era assim e quase agradecia intimamente ao pai por ter obrigado a casar; quando Jac se deprimia essa neurose vinha com toda força lhe perturbar). Paralelo a isso ainda tinha o pessoal do escritório, os outros sócios que também não engoliam o Jac porque ele tinha lá seus planos humanitários de dar assistência gratuita a quem não podia pagar, afinal advocacia tinha que ser acessível a todo mundo – ele sempre tinha achado isso e a Livi lhe deu força pra pôr a idéia em prática, tão linda ela! – mas os velhos filhosdumaputamercenáriosdesgraçados estavam mais a fim de encher o rabo de grana e sobrecarregavam os outros advogados com as maiores besteiras pra não sobrar tempo pra ninguém ajudar o Jac. Tinha também uma tensão horrorosa com o Claudinho que não se conformava com o fim do namoro porque tinha certeza de que o Jac ainda gostava dele e não estava totalmente descoberto de razão, mas o fim do namoro ainda pesava menos do que o motivo do fim, que era fazer bonito pra papai bater palminha – o Cláudio estava se tornando um verdadeiro ativista gay depois que Jac se casou. E ainda tinha a vaca da Tina que queria ter se casado com o Jac no lugar da Livi de qualquer jeito, porque já que ele tinha que ter uma mulher e não curtia, podia ser qualquer uma e ela que já era doidinha pra cair numa cama com ele, se a cama estivesse num belo apartamento nos Jardins seria muito melhor ainda. Ela não se conformava em ter perdido a guerra pra uma moça que chamava muito menos atenção do que ela e dizia o dia todo que a Livi era uma “baratinha descascada” e “arrivista social”. Tudo isso, todo dia, num único andar de um prédio e o Jac ali no meio, se sentindo como sendo cozido na pressão. Pra alimentar as chamas desse inferno a Livi tinha resolvido, por alguma razão misteriosa, que só ia pro trabalho pra cumprir horário e não ia fazer porra-nenhuma direito, o que o obrigava a ter de revisar todo o trabalho dela sempre já que não queria repassar pra outra pessoa que fosse contar a situação pra papai – dentro do escritório ele passava a imagem do casamento perfeito sempre.

Mas era evidente que o casamento era um verdadeiro lixo e que ele segurava nos dentes a imagem da perfeição. Precisava da ajuda dela e ela não estava disposta a fazer nada por ele, nem quarto adentro nem quarto afora. Passava os dias com o olhar perdido, longe demais, voejando por algum oceano em outras realidades... Se ele a chamava, armava uma cara de tédio implacável, caminhava muito indolente, não ouvia o que ele dizia. Choramingava pelos cantos da casa quase o tempo todo aos finais de semana em vez de apanhar sol ou fazer qualquer outra coisa de útil, ficava parecendo ele nem sabia o que com aquela cara-deprê. Ah, e claro, fechou o parque de diversão por tempo indeterminado. Era lógico que ela sabia que o Jac não a obrigaria a dar pra ele já que não era nenhum selvagem e aproveitava a situação, dizia que não tinha clima e coisa e tal. Tudo bem, tudo bem. Mas era mais lógico ainda que se ela fizesse um esforcinho pra que a convivência deles fosse a melhor possível, teria clima... Vinha com aquele papo de que o casamento deles era uma mentira, mas pra o Jac nunca havia sido, não tinha mentira nenhuma, era só que ele encurtou o caminho e casou sem ter namorado, mas casou com ela gostando um pouco sim, por que era que ela não adotava uma política de gostar-progressivo também? Ele havia adotado e, pra desgraça própria, dava certo, mas tão certo que agora ele estava apaixonado feito um idiota e sentia o estômago retorcer a cada vez em que ela o repelia. Estava começando a se desesperar porque achava que não havia mais o que fazer pra agradar aquela mulher e não podia prescindir dela. Dia após dia carecia dela mais e mais e em contrapartida ela ia pra mais e mais longe.

A válvula de escape de tanta pressão tinha preço – dois o grama –, tinha nome – era maconha. Fumava compulsivamente durante as noites de insônia, enquanto escrevia petições. Fumava antes de ir trabalhar e quando voltava, fumava pra jantar e pra tomar banho, fumava por qualquer motivo ou mesmo sem motivo nenhum. O Jac sempre se gabou de ser um cara muito moderado mas agora estava perdendo o controle da situação. Fumar não ajudava em nada mas lhe dava uns momentos de calma, levava seus pensamento em outras direções e evitava o choro. Mas essa noite não... Essa noite não estava dando certo. Essa noite a Livi tinha se deitado sem se despedir, tinha vindo jantada da rua, tinha batido a porta do banheiro bem na cara quando foi cumprimentar “Preciso de um banho pra ontem!” Essa era uma noite em que corria tanto perigo que achava que se alguém ligasse, ali, no meio da madrugada, e dissesse um eu-gosto-de-você qualquer ele iria onde quer que fosse pra se jogar num colo imediatamente. Estava sem comer, estava sem dormir, estava sem trepar, estava numa condição subumana e não tinha previsão de quando tudo isso ia passar, mas os prognósticos eram os piores possíveis.

Sem saber bem por que e sem ver o que fazia, deitou-se no tapete, juntou os joelhos ao queixo e chorou engasgando muito e se perguntando viciosamente o que estava fazendo com a própria vida.

9. uma vazante

Sentado bem na beira, olhava o horizonte e pela primeira vez, não via nada vindo dali. E era realmente curioso porque essas visões de futuro sempre foram um ponto muito forte seu. Mas era que nunca saberia dizer por que ela teve de ir embora, por que fugia em vez de voltar pra casa. Sempre foi uma cabeça muito pragmática, não fantasiava, quase nunca sonhava. Só que agora... agora lhe restava apenas um sentimento que sempre deplorou na vida, agora era só esperança, esperança de que ela voltasse. Tinha também uma pena doida de si mesmo, um lamento ruim pelo que estava acontecendo em sua vida... Ah, mas o que houvera em sua vida, como tudo mudou tanto sem que ele pudesse conter? O pôr-do-sol paulistano nunca foi tão melancólico... Suspirou... suspirou diversas vezes seguidas. Aproximou as mãos do rosto, ainda guardavam o cheiro dela, foi quase um consolo pra aquela saudade de amargar... Tornou a olhar a Bela Vista, dali se via toda a Nove de Julho e mais tanta coisa... São Paulo acontecendo lá embaixo e ele ali, parado, lamentando... A Livi devia passar um tempo no vão do Masp  quase todos os dias, ele ficou contente por fazer alguma coisa que de alguma forma o aproximava dela um pouquinho. Olha só, até conseguiu sorrir... É, estava muito amargo mesmo, quase não se agüentava.

"Quer fumar um?"

Não, obrigado. Nem procurou saber quem oferecia, não achava adequado fumar em plena Paulista, apesar de muita gente fazer isso. Tanta chance de rodar com a polícia...
"Hey, take it. You'll feel better..."

Ah, então era ele... "Sim, sou eu... E é você. Sounds like me and you". Sea oferecia a mão a cumprimento, mas o Jac o puxou pelo braço e beijou no rosto: tinha saído do armário afinal. "Hey, congratulations! Vai fazer uma festa?" - foi logo se sentando e acendendo o cigarrinho, bem a despeito do sorriso propositadamente amarelo do Jac. Mas como tinha gente sem bom-senso nesse mundo, meldelz! A gente sempre se surpreendia... Ia fumar ali mesmo, na Paulista? “Bem, eu acho que posso arcar com todas as conseqüências de gostar do que eu gosto e fazer o que eu quero...” Esse parecia um argumento que merecia uma boa resposta, especialmente por ter vindo do Sea, mas Jac teve muita preguiça de pensar. Esteve em silêncio um momento e acabou aceitando fumar, talvez não tivesse nada a perder mesmo. O Sea sorriu; nesse momento o Jac não sabia se gostava dele ou não e nunca soube antes também, mas agora gostava de olhar pra ele, estava lhe parecendo mais bonito que das outras vezes... Menos estranho pelo menos, não usava maquiagem nem roupas extravagantes, só um jeans e uma blusa larga muito velha, que havia sido da Livi – nela ficava péssima, muito grande, mas caía bem a ele – e não usava as horríveis lentes de contato que tiravam a cor dos seus olhos: Jac acabava de descobrir que Sea tinha olhos verdes muito escuros e achou bem bonito... Era todo meio bonito na verdade, só precisava ganhar um pouco de peso e se bronzear para perder a cara-de-doente...

“Então, tou aqui curtindo o veneninho da ferroada dela, cê também, né? Conta pra mim.” A pergunta foi tão fora do que Jac esperava que se engasgou com a fumaça: não era possível que justamente aquele cara estivesse puxando assunto de amigo. Mas que coisa! Se bem que pareceu interessante conversar com ele um pouco, talvez pudesse dar umas cutucadas doloridas, pra exercitar o sadismo. Prendeu bem os olhos à cara do Sea e respondeu que sim. “Saudade é pior no começo, queima mais... Depois vai ficando mais suave... Ela foi embora hoje, não?” Sim, havia pouco. “Ela não quis que eu fosse junto até o aeroporto...” Mas era claro que não! Ela estava fugindo por causa dele justamente... “Por minha causa? Escuta, Jac, você tem certeza que é por isso?” De mágoa pura pelo morte do pai era que não havia de ser, não?! Por que mais? “Olha, Jac, eu tenho a sensação de que quem acabou com a vida dela foi você, muito antes de mim...” Achasse o que quisesse, não era seu o problema. Preferiu estar em silêncio por uns instantes pra evitar animosidade, porque estava dando uma vontade de encher a cara do freakzinho de porrada... Teria de se conter... Mas o cara teve um acesso de tosse tão violento, ficou parecendo tão fraco, deu até pena... Hahahá, tudo bem, estava vingado no momento. Riu mais um pouquinho. “Você é meio sádico, não é, Jake?” Ah, não, não ia falar disso justamente com o doente do Sea... Mas era sim, no fundo era e sabia que o outro sabia. O que mais irritava no cara era que ele tinha uma perspicácia doentia – achava mesmo era que tudo ali era doentio, mas também não falaria disso. E o Sea estava dando risadinhas, maldito! Tinha a impressão de que o Sea scaneava todos os seus pensamentos, feito água entrando pelo ouvido, e se sentiu um pouco vulnerável, um pouco mais do que já estava; não gostava de ficar vulnerável, mas sabia reconhecer quando não tinha mais jeito.

O Sea se acomodou um pouco mais perto, numa familiaridade bem surpreendente. “Posso te fazer uma pergunta... bastante indiscreta mesmo?” O tom de confidência naqueles olhos enormes chegava a dar medo... E adiantava dizer que não podia? Já tinha feito algumas... Falasse então. “Você por um acaso tomou banho antes de sair de casa, Jake?” Nossa! Qualquer pergunta nesse mundo era esperada, menos essa! Não, não, não havia mesmo a menor, nem a menor chance que fosse de o Jac imaginar que teria de responder àquilo, apenas arregalou os olhos e fez um sinal negativo com a cabeça, bem discreto. Sea sorriu simpático, sabia que não. Mas sabia por que? “Você tá com o cheiro dela... do corpo dela... nas mãos e no rosto – tocou os dedos de Jac bem levemente – mas mais nas mãos... Você deve ter catado a noite toda, imagino... Ela gostou?” Jac sentiu um ânimo estranho: queria saber da verdade, então tava bem, ia saber. Sim, tinha transado com ela sim, a noite toda, todinha, na sala, no quarto, no banheiro, na cama, no chão, na mesa, de pé, deitado... E foi sexo oral, anal, mão... Teve de tudo... Se ela gostou? Claro que sim! Ela tinha uma tara louca em ser comprada. “Em ser comprada? – era uma cara de espanto e Jac adorou poder surpreendê-lo também – Você... Não! Você não pagou pra ela te dar, né? Pagou? Sim... Sim, você pagou pra ela te dar... Oh-my-god!” Era evidente que sim, como achava que ela havia conseguido comprar as passagens de avião e um lugar pra ficar em Buenos Aires? Ele deu a grana pra ela... – Sea abaixou a cabeça – mas ela não quis aceitar de graça. Ela tinha pedido as contas no escritório, queria pegar a grana do FGTS e sair por aí. Mas o dinheiro não ia dar pra muita coisa, ia acabar rápido, e o Jac achou melhor dar uma boa grana pra ela. Em vez da demissão deu uma licença por tempo indeterminado, se ela voltasse para o Brasil, teria emprego pelo menos. “Deu um jeito de não perder pra sempre... É simples e perfeito, eu não teria feito melhor... Mas é claro que não... É a sua ex-esposa, você deve saber lidar com ela... – tinha uma melancolia grande na cara agora – Cacete, tou admirado com você, tou mesmo. Eu queria ter passado uma última noite com ela também...” É, sabia... Sabia sim, mas não quis falar, olhava longamente o rosto fino do Sea e achou que tanta tristeza deixava-o realmente mais bonito. Teve uma compaixão muito grande, sabia que deviam estar sentindo quase a mesma coisa naquele instante e não era nada agradável. Abraçou os próprios joelhos, deitou o rosto sobre eles, tornou a olhar a Bela Vista. Era realmente um lindo entardecer, lindo que doía. Alguma brisa trazia um cheiro de manacá e ele se lembrou de que ela gostava muito de manacás e que o pé que ela havia plantado no jardim do prédio estava grandinho agora... Sentiu um cafuné nos cabelos, era o Sea, parado bem ao lado, pertinho. Olhou os olhos dele, estavam dóceis e tristes, dava vontade de olhar mais. Ele agora tocava o rosto do Jac com os dedos, numa delicadeza própria de criança; avançou devagar e lhe deu um beijo leve e molhado na boca... Depois deu outro... E o Jac o afastou educadamente antes do terceiro. Mas o que era que acontecia com o Sea? “São só uns beijos, Jac... Você não saiu do armário?” Sim, tinha saído mesmo, mas não era por isso que sairia beijando o primeiro que aparecesse – disse isso por não saber o que dizer, estava um pouco assustado com o inusitado da situação. “Pára de besteira... Eu sempre tive vontade de beijar você e acho que você também, né? Ninguém paga drink pra alguém que não conhece se não tiver segundas intenções... E você já me fez isso mais de uma vez...” Sim, realmente...

Mas ao mesmo tempo que ia concordando, uma idéia muito surreal lhe passou pela cabeça e a teria repelido se não achasse que o Sea era a coisa mais doentia que já tinha visto na vida, ia até se levantando pra falar: escutasse, estava dando aqueles beijos porque ele tinha o cheiro da Olívia na boca, era isso? Sea se levantou também e segurou os passadores de cinto da calça do Jac. Riu. “É, é por isso também... Claro! Dá pra pegar vocês dois com um esforço só, olha que prático?! – riu de novo – Mas não se sinta depreciado por isso, querido, por favor... Prometo que não te peço pra vestir a camisola dela se a gente dormir junto algum dia...” Riu novamente e olhou alegrinho pra cara do Jac, que se sentia um pouco mais relaxado e dava um tapinha com o indicador no queixo do outro. Riam-se um pra o outro. O Sea era um pouco mais baixo que o Jac mas sempre lhe deu a impressão de ser mais alto... Devia ser porque era muito magro ou talvez porque não era mesmo nada do que parecia ser. Jac recebia uma carícia no rosto sem saber quais eram as intenções verdadeiras por trás de tudo aquilo. O que estaria querendo? “Olha, Jake, no momento só ficar aqui com você mesmo, e se puder ser bem pertinho melhor” Sim, certo, mas o que mais queria? “Schssssssssssssssssssssss – apontava o céu, que tinha um cor-de-rosa fantástico – Pára com isso, fica comigo hoje”. Não sabia, não sabia se uma coisa daquela valeria a pena e, muito embora a proposta parecesse sedutora, não achava que tudo seria muito simples na manhã seguinte. Ah, e a propósito, podia chamá-lo de João Carlos mesmo. Sea riu de novo, baixou a cabeça, tornou a olhá-lo. “Não vai atender se eu te chamar de Jake?... Tá com tanto medo assim de ter alguma intimidade comigo?” Ah, tinha medo sim. Tinha visto o que ele teve moral pra fazer com a Olívia. “Ninguém aqui falou em casamento... Jake... DJEEEI-KE... Jake... E a propósito, você não tirou minha mão da sua cintura até agora...” Realmente, realmente... Pensou que precisava encontrar motivos pra afastar aquele homem de si e, se não fazia, era que de fato não queria. Mas o Sea ainda continuou: “Olha, eu acho na verdade que você não tem nada a perder...” Nem a ganhar tampouco, né? “A ganhar? Talvez sim... Você não vai dormir sozinho pelo menos, o que é um perigo pra gente carente...” Teve dúvida quanto ao que fazer por um instante, mas o Sea fez uma carinha travessa que desmanchou a hesitação. Beijaram-se. Abraçaram-se longamente... intensamente... Voltaram a se beijar e o Jac aprendeu que o Sea beijava com os olhos muito fechados. 

10. a erosão


Os olhos pretos do Jac eram a coisa mais preta que a Olívia já vira em toda a vida: muito, muito pretos. Bobeasse, nem a cor do universo infinito não era tão preta como os olhos do Jac. Tinha cara de trabalho sério e a Livi achava que era isso que o deixava mais bonito – devia ser o charme dele. Nem entendia como uma pessoa que nem ele, sempre tão sóbria, acabou virando gay, mas um dia ele explicou que o negócio dele tinha mais a ver com namorar uns homens do que ter um estilo gay de ser e viver e vestir e tal. O Jac era assim mesmo, super bem articulado e muito certo em tudo o quanto fazia, tipo uma fortaleza mesmo. Era sim, mas naquela manhã, Olívia ia ver que até muralhas de pedra podem cair sob efeito de ventania constante.

Acordou, era sábado, o Jac não estava ao lado na cama. Estranhou, pensou em voltar a dormir, pensou em levantar pra procurar o Jac e resolveu dormir mais uns minutos... Mas não conseguiu. Levantou-se e foi até a sala e nada de Jac na sala. O escritório então... Não estava sentado diante do computador... Meldelz! Mas o que tinha acontecido com ele que estava deitado no chão enrodilhado daquele jeito? Meldelz! A Livi estava estática, sem saber o que fazer, qualquer coisa lhe parecia ruim. O Jac certamente não estava passando mal e nem morto, estava só dormindo mesmo e pra ter dormido ali, daquele jeito, era que a noite devia ter sido uma das piores da vida. Já tinha um tempo que achava que o Jac tinha tomado ares Kafkianos, nunca tinha nada muito positivo estampado na cara e nem no que falava... E meio tenso, perdido, o próprio Joseph K. E a grande verdade era que se o processo ia mal desse jeito ela tinha uma parcela de responsabilidade relativamente grande. Sentiu um frio de morte lhe correndo a espinha toda. Precisava tirá-lo dali, abaixou-se, tocou o rosto. Ele despertou muito assustado: “Lívia... Nossa, que... Nossa, que dor de cabeça, Lívia! Tou mal...” Mas o que era que ele tinha? Queria que ela fosse buscar alguma coisa? Era melhor sentar um pouco, sair do chão... “Quero nada não, Livi... Mas fica aqui comigo” – o olhar era sonolento e sombrio e frágil, feito de criança doente. Esse era o tipo de olhar que a obrigava a fazer as coisas, mas nesse caso, faria o que ele pedia mesmo sem o tal olhar. Fez com que ele se acomodasse em seu seio e o abraçou, queria dar carinho e cuidados, dizer alguma coisa boa... Mas ele encaixou o rosto entre os dois seios dela e a apertou nos braços com tanta força que ficava difícil pra falar. Daí, ah-meldelz, já era sacanagem dele fazer aquilo, só podia ser! Daí ele chorou com muita e muita vontade! Não soluçava nem nada, só inundava sua blusa com um rio que minava das pedras de ônix que tinha nas órbitas, tipo rio desatado mesmo.

A Livi estava se desmanchando no meio de tantass lágrima, não suportava que alguém sofresse tanto assim por sua causa, estava se descontrolando. Não tinha coragem de pedir que ele parasse e nem podia, mas gostaria. Abraçava, deixava... Deixava chorar, ele devia estar guardando isso havia tempo. Deixava... Deixava também que as defesas contra ele afrouxassem, deixava sim... O que mais haveria de fazer? Era isso que todo aquele choro estava reivindicando... Deixava... Era uma criancinha que vinha numa cesta rio abaixo, como não iria recolher? Como não? O Thomas tinha recolhido a Teresa também, o Thomas, tão leve, cuidou de toda a fragilidade da Tereza, pôs pra dentro de casa e da vida a Tereza e sua pesada mala, em plena Praga em revolução... E esse era o romance de sua vida agora. Livi era Thomas e tomaria sua Tereza pra si, não a deixaria porta afora.

Segurou o rosto do Jac com as duas mãos, ele já parava de chorar e mantinha os olhos fechados, a cabeça baixa. Falasse, falasse com ela, ela estava ali com ele agora... Falasse... “Livi, eu... Eu não sei...” – tornou a chorar um pouco, engasgou, não conseguia dizer o que precisava. Falasse, não tinha problemas, ela ajudaria no que fosse. “Olívia, ah... Ai, Olívia eu, eu amo você... Eu não ia te falar, não queria que você tivesse pena... Mas é que... Eu... Desculpa...” Chorou outra vez. Era de fato a primeira vez que ouvia eu-te-amo do Jac e o desconcerto foi tamanho teve medo de si mesma. Agora sim, agora estava bem fodida! Tereza em seus braços pra sempre, nunca mais conseguiria ser egoísta e ignorar sua vida conjugal... Nunca mais teria o direito de negar nada a ele, nada do que ele realmente precisasse... Agora tinha um marido de verdade, de-fato-e-de-direito, homem pra amar e respeitar até que a morte separasse, era isso, e teria de aprender a amá-lo rapidinho, se não ia ser pior.

Mas por hora tinha que resolver o que fazer com o eu-te-amo do Jac, que ainda estava reverberando pelo ar. Porque dissesse o que dissesse qualquer psicanalista ou filósofo desse mundo, lembrava mais de Espinosa e sabia que quem ama precisa ser amado de volta igualzinho, na mesma medida. E não ia dar pra responder também-te-amo imediatamente porque o Jac tava triste mas não era retardado e não ia acreditar, ia achar que ela dizia por pena e estaria certo, ia ser pior. Nesse caso então era melhor apelar pra outras esferas do amor, era melhor ir beijando e tirando a roupa porque se com sexo se não decide uma guerra, pelo menos se dá uma trégua.

Esteve por cima do Jac todo o tempo porque sabia que ele gostava, mas depois de terminar, deixou que ele se descansasse em seu peito. Fazia tanto tempo que não se deixava tocar pelo Jac que já estava esquecendo como era, o jeito dele, mas sabia que não gostava muito. Só que naquela manhã, toda a melancolia fez do Jac um amante irresistível. Não entendia por que e nem queria, mas era um dos melhores sexos que já tinha experimentado. Foi assim o fim de semana inteiro.

11. pedra rolante


Esteve relutante em ir à tal festa por um tempo, tinha um tanto de serviço atrasado pra terminar e sabia que se saísse iria dormir até mais tarde e o trabalho esperaria mais um tempo. Mas a Livi acabou conseguindo convencer propondo uma barganha muito sem-vergonha. “Vou sair de qualquer jeito e queria você lá comigo. E se você for, pode fazer alguma maldade bem sacana no quarto comigo depois” e fazia uma linda carinha de pervertida. Tava bem, o apelo ia funcionar daquela vez. Agora escolhia com todo o cuidado a roupa que usaria, gostava de estar maravilhoso em eventozinhos sociais, especialmente os da Livi, onde só ia gente moderninha e diferente...

“A noiva já terminou?” – estava linda, sorrindo, toda iluminada por um pó brilhante no rosto e no colo, o cabelo dividido, quase uma melindrosa... Deu um abraço por trás e uma mordida nas costas. Gostava muito quando ela tinha esses arroubos de afetividade, era uma brisa de veranico no meio do inverno. Estava adorando o vestido que ela usava, o decote nas costas era muito sedutor. Ela nem respondia, ria simplesmente.

Quando chegou a tal festa percebeu que a diversão morava antes e depois dali, porque já se sentiu deslocado no primeiro cumprimento que recebeu. Um homem mais velho, muito expressivo, que dava beijos intensos em todo mundo em vez de um aperto de mãos. Passados alguns instantes Jac se deu conta de que quase todo mundo por ali fazia a mesma coisa. Povinho alternativo pra cacete! E se sentavam no chão e riam alto e faziam críticas abertas uns aos outros sem quaisquer eufemismos e se sentavam no colo uns dos outros e trocavam selos na boca e se vestiam às vezes com muita elegância e outras sem nenhuma mas sempre dando um jeito de chamar atenção... Era um baile de egos! Um querendo saber mais que o outro sobre moda ou cinema ou teatro ou qualquer outra arte... E a Livi era tão desembaraçada naquele miolinho... Voejava de lá pra cá com o dedinho passando nas paredes, sorridente, quase uma ninfazinha. Achou muito curioso que fosse aquele o mundo dela porque pra ele tudo aquilo era muito artificioso demais! Dava até uma sensação de sufocamento ficar ali parado esperando a Livi retornar de sua volta olímpica pela pista. Mas voltou e lhe deu o braço, o que o deixou menos tenso. E surge então uma mulher extremamente indiana vinda sabia-se lá de onde bem na frente da Livi, vira pra o Jac e diz “Bento é você com sua amante”, beija-a na boca bem rápida e vai passear por aí. Quem era ela? O que era aquilo? “Não sei, Jac, não conheço essa menina.” Fosse quem fosse, era uma sujeitinha muito folgada, não!? “Tá com ciúme?” Não, não era ciúme, mas e se fosse? A vaca tinha de dar um jeito não provocar situações, não? “Deixa... Deixa quieto... Esse povo tem isso de gostar de causar um pouco de impacto mesmo... É que nem aqueles seus amigos falando da viagem que um fez pra Riviera, do carro novo que o outro comprou... Mesma coisa. Cada um aparece com o que tem.” Mas ela, Olívia, ela não tinha tanta gana em aparecer e também gostava das mesmas coisas que aquela gente toda... “Quando a gente é novo, gosta de fazer bonito, gosta de se comparecer. – riu – Foi o Guimarães que disse isso... Mas é verdade, eu acho que já passei da idade...”

Certo, tudo bem. Chegou mais alguém que puxou assunto com ela e Jac resolveu olhar a paisagem, se sentindo meio que antropólogo, meio que psicanalista. Ficava imaginado quais haviam sido os problemas na infância daquela gente... Nossa, havia num canto mais escuro um casal completamente estranho! Era um cara negro, todo bonitão, de blaser e cabelo black-power e uma mulher com um vestido muito sóbrio e reto e um cabelo curto, muito vermelho e bem penteado. O detalhe era que ela tinha mais altura que namorado, que também não era baixo. Era uma coisa impressionante mesmo, Jac estava contente em poder vê-los de longe... Ele sorria muito, gesticulava muito e parecia muito alegre; ela era mais contida, chic, parecia uma bailarina... Tão branca! “Jaqueeee, tou falando com você!” Nossa, desculpasse, tinha se distraído. Estava tudo bem? “Claro! Acabei de experimentar uma cachaça de framboesa fantástica. Quer provar também?” Não, era melhor não, tinha de voltar dirigindo ainda. A propósito, conhecia aqueles dois lá no outro canto? Lá, lá no escuro, o negão e a ruiva alta... Ela olhou e deixou-se gargalhar mesmo. “Nossa, não acredito, que coisa incrível! Eu conheço sim, claro, mas não é uma mulher, é o Siegfrid. Vem, vamos lá dar oi pra eles.”

Foram. Realmente, de perto se via que era um rapaz. “Você não lembra dele, Jac? Era o cara que a gente foi ver uma performance numa balada lá no centro, lembra? Tava todo de David Bowie no dia, você tinha gostado dele, tinha até mandado umas margaritas na mesa dele... Lembrou?” Ah, claro... O David Bowie... Sim, tinha se lembrado, mas nunca, nem em mil anos o reconheceria. Naquela noite tinha ficado um pouco bêbado, viu o cara dançando no palco, achou interessante. No fim da performance o cara abaixou e mandou um beijinho com o dedo e o Jac, que tinha então uns três ou quatro meses de casado, estava desesperado pra beijar um gato... Mas acabou não beijando não. Uma amiga da Livi apareceu com um cartão, disse que o tal David Bowie tinha dito pra ele ligar, pra aparecer na escola de dança em que ele trabalhava pra ganhar uma... aula. O Jac queria muito ir – assistir aula de dança o cacete! – mas só naquela noite, já não achava que compensava o crime no dia seguinte e o problema não era a Livi gostar ou achar ruim, era só que ele, João Carlos, não estava disposto a viver uma mentira com ela, queria ser o melhor marido possível. No final, ela é que foi até lá e acabou fazendo o curso.

“Oi Sea, tudo bem?”, e como os outros, o Sea a recebia com um maldito selo na boca. “Esse é o João Carlos, o meu bofe... A gente chama ele de Jac”. Sea olhou nos olhos, com cara de malícia: “Sim, eu sei quem ele é... Então, e esse aqui é o Marcos, meu namorado”. O tal Marcos sorria muito simpático, parecia sincero e menos afetado que o resto das pessoas. O Sea segredou qualquer coisa pra Livi, depois pediu: “Ãh, Jake, eu poderia pegar sua mulher pra mim um tempinho – riu – Te prometo que devolvo limpinha...” Claro, levasse... O folgado-filhodumaputa tinha uma cara muito arrogante e era bem mal-educado por ir falar baixinho com ela por ali e deixar o namorado e ele, marido dela, pra escanteio... Mas estava bem, daria um jeito nisso depois... “Não fica queimado, João! O Sea é assim mesmo, ele gosta muito de aparecer...” – riu. Não, tava tudo bem – ao menos era o que dizia mas nem tinha intenção de fazer o Marcos acreditar. O Sea era assim sempre então? “Assim como? Vaidoso? Sim, sempre... E ele deve ter ficado com ciúmes de você com a Olívia também, sabe? De ela ter de dar mais atenção pra você do que pra ele...” Mas o Jac era marido dela, isso não tinha sentido. “As pessoas não precisam fazer sentido, João, e o Sea faz questão de não fazer mesmo.” Realmente, percebia-se pelas roupas dele também. Usava vestido sempre? “Não, na verdade não. Mas já teve vez que ele ficou usando um tempo. Esse aí ele viu uma mulher numa revista usando e resolveu copiar o molde, mas deu uns toques meio Matrix, tá vendo...? Uma coisa meio igual batina, só que dá mais liberdade de movimento. Ele mesmo sentou na frente da máquina e costurou... Ele é criativo...” O cara já estava fazendo cara de bobo apaixonado, falando de como o outro era bacana, mas o Jac não tinha o menor ânimo pra escutar as exaltações. Olhava pra Livi, ela se divertia, ria muito. O cara da batina estava com a mão no decote das costas dela... Agora se encaravam, pareciam ter uma proximidade incomum de almas. Chegavam mesmo a ter os rostos parecidos, os olhos muito grandes, narizes longos e estreitos, bocas pouco rasgadas, só as cores diferiam, ela bem morena, ele bem branco... “É, eles são até parecidos mesmo, são da mesma fôrma, né, João. Olha, até os trejeitos...” E ele, Marcos, não tinha ciúmes do namorado que saía por aí beijando todo mundo? “Não, não dá pra ter ciúmes do Sea, não. Mas na verdade eu nunca fui muito ciumento. E nosso caso é bem sossegado, se ele toca ou não um puteiro o problema é dele. Mas pra você ter me perguntado isso é que você tá com ciúme.” Estava sim, estava incomodado. Porque nem em mil anos ela se alegraria ao lado dele como estava naquele momento. Mas não diria isso, não queria ser desagradável ou emotivo no meio de uma... festa! Saco!

Eles voltavam, voltavam de braços dados deslizando e rindo e olhando pra trás. A Livi quase tropeçou no Marcos sem olhar por onde andava, teve o Jac de escorar pra ela não cair. Como o braço dela ainda estava preso no Sea, também teve de pedir permissão pra pegar de volta a própria esposa. “Prontinho, Jake, está entregue e a salvo... a sua... mulher...” – ele olhava bem cínico e muito discretamente apertou a bunda do Jac, que não acreditou que aquilo poderia estar acontecendo e perdeu a paciência: foi logo apertando o braço do cara e falando baixo e incisivo “Você é muito folgado, sabia... Tinha que apanhar um pouco pra ficar esperto... Mas eu não vou te bater... Porque eu acho que é isso mesmo que você tá querendo, vou ter que pensar em outra coisa”. O Sea olhava sem mudar a expressão do rosto, era mesmo um ator, não seria muito fácil lidar com ele. E algum idiota ainda o salvou da situação. “Mas escuta, ô showman, você não vai dançar pra gente não? Tinha prometido, achei que essa roupinha bonita era pra isso”...
“Eles querem que eu dance, Jake. A gente tem que atender o público. Você me deixa ir dançar?” – sorria muito falsamente e, pra Livi – “Se lembra do que eu te ensinei de Zouk, né? Vai ter uma provinha a-go-ra!”. Pediu-se música, dançavam no meio do salão, todo mundo em volta olhando os dois... Ele a conduzia pelos giros e requebros da dança como se ela fosse uma pluma e toda uma atmosfera de sedução pairava baixa em redor deles. Era bonito de ver, ela tão linda e forte, os músculos marcados debaixo de tecido fino do vestido e ele com uma elegância de mestre-sala. Bonito sim, bonito demais. Era naquele movimento que ela se largava, que voava... Ao fim da dança todo mundo aplaudia muito, ela sorria e escondia o rosto e o Sea agradecia os aplausos feito um verdadeiro astro. Naquele instante o Jac entendeu que o corpo da Livi era solto e leve e que prendê-lo seria agarrar uma nuvem com uma sacola de supermercado.

12. o mar cantava ao vento


Deixava... Deixava sim, tudo bem. Era só por hoje, nada demais. Nada assustava, ela apenas se descansava, se sentia sem ter que se proteger. Eram muito bons amigos - amigos que se gostam, só isso, uma coisa tão íntima, só dela, um instante particular. E era tudo tão bom... Tão suaves as mãos... e gentis e... Era alguma coisa de que ela precisava, um pouco de fantasia (não dá pra ser tão responsável assim o tempo todo, muita pressão!). Um alumbramento que chegava e desde logo era verão. Tudo muito natural pra ela, como se as longas mãos do Sea fossem mais uma ondulação do seu próprio corpo...
Uhn... Na verdade, achava que não sabia onde o Sea queria chegar com tudo aquilo... Porque aquela história de fazer escultura era muito pouco convincente, mas estava bem, mesmo assim, tudo bem. Deixava, certamente ele a queria bem. Não sabia com que tipo de querer, mas devia ser, tipo, um querer-bem. Porque fazia com que ela se sentisse bonita, bem bonita, bem perfeita em seus desenhos e linhas. Ah, só podia ser coisa de quem gosta, coisa de amigo, uma sensualidade tão inocente. Sempre toque de superfície, suave... A brisa da manhã pairando pelas ondas do mar, quase um sussurro de paixão. Podia gastar todo tempo da vida nesse sentimento de música.

Os sentimentos de música, eles são paixões que entram na alma da gente pelo sensível mais passivo, que é o tímpano... Daí, vai gravando os sons na nossa memória de sentidos e vai alterando a ânimo da gente pra alegre ou pra triste, depende, a gente escolhe a música certa pra cada instante de alma... Mas o bom é que a paixão arrefece e se apaga quando a música acaba. Depois, só lembrança. A Lívi ouve música o tempo todo, especialmente quando tem os sentimentos meio mornos, quando faz falta uma emoção arrebatadora natural, falta que a ela acontece com frequência.

E o Sea, ele era... era uma melodia de toque e de cores e perfumes, tipo uma música sinestésica, tipo um poema simbolista ou tudo isso junto, uma fanomelopéia. Tão bom, nem parecia verdade.

Não pensava em nada, nem em si, nem nele, não tinha como ser melhor. Quando ele tirava as mãos da sua pele dava um froiozinho e um arrepio sempre... "Fine... Are you cold sweety? Tudo bem?" Sim, tudo bem, e sorria. Em geral, se vestia e saía, mas hoje, agorinha mesmo, o Sea a segurava pelas mãos. "I need sleep... Sleep close to you... I think I dreamed about you last night" Dormir, ah, sim... Podia ser, outro dia, menos hoje e ele sorriu amarelo, não muito contente com a resposta. Mas precisava ir, tinha de ser assim por hora - mesmo porque não estava preparada pra nada que não fosse imediato. Ele lhe deu um beijinho nos lábios, como de costume, disse que ligava e que ela ligasse se precisasse...

Mas a dona Olívia não queria ouvir nada, preferia se lembrar da última melodia antes de o dia voltar ao seu normal.

13. vento do sul


A Lívi não gostava muito de falar, sempre preferiu escrever. Bom, na verdade, não se incomodava em falar, mas era mais dada a escutar mesmo. Quando ficava triste, mas triste de não ter jeito, preferia ir pra Pasárgada que se abrir com um amigo e era o que fazia em geral. Foi por isso que se sentiu bem nua e descascada quando o Sea perguntou dos pais dela. Ah, ele sabia que o pai ia mal de saúde, preso no hospital e que mãe ela não tinha. .

"Sei sim, pequena, mas nem sempre deve ter sido assim, que você não é... Como é que se diz? Filha de chocadeira. O que tinha antes?" Nua, bem nua, como nunca se sentiu com ele antes. Nua na chuva. "Venus naked on my chains, this is the way I want you, hahaha!". Sorria esperava a narrativa dela, não desviava os olhos, os olhos ostensivos. E ela, ah, ela tinha de obedecer. Estava bem então, deixava... Certo, vamos-lá, era uma vez uma mulher muito bonita e muito mimada. Ela viveu num castelo encantado nos Jardins durante toda a vida, esperando um príncipe que a levasse para conhecer o mundo. Daí veio um príncipe que não dispunha de muitos fundos pra manter essa princesa, mas ela ficou num fogo danado quando viu o hippie louco e foi logo fugindo de casa. Como ele era bem duro e ela nem sempre ficava alegre com isso, o jeito era encher a cara de droga e eles tomavam ácido feito condenados. Nem precisava dizer que os pais da princesa ficaram putíssimos com essa história toda. Daí veio a Olívia... Daí a aventura da princesa teve que durar mais que o necessário e, quando a vida virou rotina de dona-de-casa-de-classe-media-baixa, vixi, daí perdeu a graça. Ela pouco queria saber da filhinha e estava de saco cheio com o príncipe (que tinha uma blábláblá bem chato sobre política e revolução) e com as drogas, queria retomar a vida de onde a tinha deixado. Fugiu de casa outra vez, pediu ajuda aos pais, queria ir pra França e deixar a criança em algum colégio interno muito bom... Mas nesse meio tempo, a Olívia já era Lívi e usou a pouca autonomia que tinha pra dizer que não largaria o pai sozinho - ele se tornou muito depressivo depois da separação. A mãe insistiu, mas como não teve jeito, ficou num veneno tamanho que nunca mais deu notícias que não fossem por escrito e assim, a Lívi se acostumou a ler a mãe - até preferia no final. Quanto ao pai, era tudo de bom, só não era pai, fez o melhor que pôde e deu todo amor que tinha pra dar. Mas por causa dessa coisa de ele não ter jeito com criança, a Lívi não teve muitas referências de mundo infantil, já lia Machado de Assis e Kafka aos onze anos, conhecia qualquer coisa de teoria econômica e cresceu ouvindo MPB e rock'n'roll de todos os tipos – o único disco infantil que teve foi Os Saltimbancos. Ela sempre gostou muito do pai e, embora ao lado dele se sentisse bastante sozinha, era a única família que tinha, e então, estava bem. Também não teve muitos amiguinhos porque mudava de escola com frequência. Isso era meio chato, mas fazia restar muito tempo pra ler - o pai sempre dizia que nenhuma companhia superava um bom livro.

"E você fez Letras por causa do seu pai?" Em parte sim. Na verdade tinha gosto por leitura por causa do pai e estudou Literatura por gostar de ler... Mas achava que não tinha a ver com o fato do pai ser professor, isso não.

"Mas e paixão? Você nunca teve muita vontade de ser qualquer coisa diferente, sei lá... Cabeleireira, médica, rockstar, ginasta, essas coisas que a gente quer quando é criança?" Ah, sabia lá... Sempre preferia deixar que as coisas acontecessem e ver onde se encaixava melhor. Porque quando queria ser coisas diferentes, essas coisas estavam no plano do impalpável, sabe? Já quis ser sereia, ninfa, anjo... Já quis ser homem também... .

"Mas isso é natureza, a gente não escolhe..." A gente nunca escolhia nada... Nunca. "Oh, I don’t think so! Tsctsctsc! Eu acho que escolho quase tudo que tem a ver comigo". Pois que achasse, isso era o que dava Vida pra vida da maior parte das pessoas. Mas e a vida dele? "Como foi minha vida antes de você aparecer? Sei lá. Não me lembro bem de muita coisa, as drogas acabaram com a minha memória. Mas eu já tive que morar em vários países diferentes e minha mãe foi bem puta e eu não tenho pai e estudei bastante mas nunca me formei em nada e já transei com mais gente do que o céu tem estrela e tenho mais anos nas costas do que parece e... sim, eu já sei português o suficiente pra nunca mais ter de falar inglês, mas não paro pra não perder meu charme de gringo – brega né?... Deixa ver... O que mais é importante? Ah, sim, eu gosto de gatos... and this is all I have to say about it". A Lívi riu, gostava do filme a que ele fez referência mas achou a biografia muito sintética... Queria saber outras coisas. Tinha um diário? "Sim, mas não vou te dar. E não vou te contar mais nada também. Vai ter que me aprender na prática, se quiser" e ela queria sim, queria ver a vida dele acontecendo, gostava de tudo sobre ele, até de quando ele a deixava sem ação ou muito embaraçada. Mas não disse nada disso, estava certa de que ele sabia. "Well, you know, Liv, you're good, you're really good... and I don't know why". Não sabia por que? Não tinha nada que saber, ela era assim, todas as garotas-olívia eram assim. "Nada, tem mais coisa aí, vai ver como tem".

14. a dureza


Acabavam agora de sair do banho. O Jac ia escovar os dentes mas parou pra olhar o reflexo da Lívi no espelho, ele tinha esse hábito de olhar as pessoas muito longamente, o que a deixava bastante incomodada, porque em geral o objeto de estudo daqueles olhos era ela mesma e ser analisada não era coisa de que gostasse: era tipo a análise do livro de sua vida, que ainda não estava concluído. Mas o Jac gostava de ver tudo, nem beijo não dava de olhos fechados - a coisa menos romântica de todos os tempos.

Agora os dois estão secos, com os dentes escovados e o Jac a conduz até a cama segurando pela nuca, como se guiasse um carro, e embora deixe, a Lívi também odeia isso. Na verdade, havia muitas e muitas coisas no Jac de que ela não gostava - ele tinha ares aburguesados, afrancesados, quase um Primo Basílio. Mas o jeito com que ele dirigia era o pior: pra começar, tinha um carro enorme, um off road, meldelzdocel, pra andar em São Paulo! Nem tinha cabimento uma coisa daquelas, o carro ocupava a vaga de dois quando parado e se tornava uma máquina de aniquilação de motoboys quando andava - dava pro Jac um saborzinho de poder tão estúpido apavorar motoboys que ziguezagueavam pelo trânsito! E corria com aquela banheira o desgraçado, como corria! A marginal era um grande autódromo pra tirar racha. Como podia?! Isso sem falar na lição de moral que ele tinha que dar pra todos os flanelinhas da cidade. Por que saía de carro se não queria passar por isso? Não dava pra entender...
"Liviiiiii...? Ce tá me ouvindo?" Opa! Tava distraída, viajando... Repetisse.
"Então... Comprei um óleo de chocolate pra passar na tua pele... Acho que ce vai gostar...".

Ah, tínhamos ai outra coisa irritante: ter sempre o palpite de que ela ia gostar das besteiras que ele comprava. Nem dava pra gostar porque ele comprava de tudo! Era tanta coisa que ela nem tinha tempo pra ver se agradava mesmo ou não. Um absurdo de consumismo! Mas o pior era que ele fazia disso um estilo de vida e além de comprar coisas, também comprava gente. É sim!!! A Lívi era só uma das pessoas que ele já tinha comprado. A questão era que ele achava que dinheiro significa poder pra calar a boca de qualquer um e assim, ele nunca pegava fila em nenhuma repartição pública, ele nunca ficava sem entrada pra show por superlotação ou sem reserva em restaurante, ele nunca deixava de entrar em nenhum espetáculo, mesmo estando atrasado, ele sempre conseguia embarcar no vôo que queria e na poltrona que preferia, mesmo com overbooking... Perguntasse por que, a resposta era sempre a mesma: se tinha estudado e trabalhado desde cedo era pra não ter de passar por certas coisas – o que na linguages da Livi, traduzia-se por: sou mauricinho-de-classe-média mesmo, conheço a lei e tenho grana. Em poucas palavras, um legítimo filhodaputa!

"Lívi! tá viajando outra vez, gata... Minha leoa... Vem cá, tem presentinho. Olha isso aqui". Mas ela contraiu uma certa animosidade pensando nisso e não queria ser muito educada. Ele olhava todo o corpo dela e depois os olhos por bastante tempo. Mas ela respondia com displicência: que parasse porque não queria saber de porra de óleo nenhum.
Agora a Lívia podia ver a cara do Jac se contraindo de raiva e sentia um prazer muito íntimo por isso. Sabia que ele não faria por menos - com o orgulho do João ninguém brinca, diria o sogrinho! Mas ela brincava sim e folgava, já que não tinha como a vida ficar muito pior, pelo menos se divertia irritando o bonitinho... que de fato se irritou. Metralhava o ar com a respiração e cerrava os punhos e forçava os dentes uns contra os outros; silenciou uns instantes... Estalou o pescoço pra relaxar, massageou os próprios ombros, forçou um sorrisinho sarcástico e pegou com forca o braço da Lívi: "Escuta, você vai tratar de ficar boazinha comigo hoje"... Ah, francamente, não tinha nenhuma Lívi afim disso não... "Não é problema meu. Eu tentei ser legal. Agora bem fica boazinha. Relaxa, senão é pior pra você".

Eram essas as duas outras coisas extremamente escrotas no Jac: fica-boazinha e relaxa-se-não-é-pior. Mas ia deixando, fazer o que? Tinha de deixar agora... e deixar tudo pra lá depois.

15. a suavidade


O Jac era um cara que acreditava em deus, mas só tinha seus apartes com o divino quando as coisas iam mal. No fundo, a conversa dele com deus era quase um blábláblá com algum alterego pra por em questão o dar-certo ou não de algum assunto. Agora, por exemplo, estava queimando uma das mãos com uma xícara de capuccinno fervente e a outra com a ponta de um baseado, enquanto seus olhos da alma procuram a branca pomba do divino voando pelos ares astrais. Ele não entende por que é que quando as coisas vão indo bem precisa acontecer alguma merda pra estragar absolutamente tudo. Estava ali a Lívi, no quarto bem ao lado, dormindo feito um anjinho em cima duma nuvem. Linda de ver! Meuldelz, paizinho-nosso-que-tá-céu, dissesse: como era que aquela mulher podia fugir com tanta facilidade? Agora que estava tudo bem entre os dois ela ia... Nossa, que vacilo esse! Havia demorado mais de um ano, um ano e quatro meses pra ser exato, todo esse tempo pra pôr esse casamento em ordem. E agora, justamente agora que já não brigavam por qualquer coisa e que estavam se entendendo ou pelo menos se aceitando como eram e que na cama iam muito-bem-obrigado, bem agora aparece essa porra de viagem que ela precisava fazer com os amiguinhos do teatro... e o Jac não podia acompanhar. E era obrigado a permitir, afinal de contas já tinha deixado e dito que não iria junto muito tempo atrás, muito tempo mesmo, uns cinco meses pelo menos, quando ainda não estavam tão bem assim e queria mais que ela arranjasse mesmo alguma ocupação que não fosse perturbar. Pois bem, muito bem! Pai-nosso-que-está-no-céu mandou um castigo filhodaputa por toda sacanagem que o Jac já fez na vida: pai-nosso ia fazer com que ela se divertisse pra caralho com o amiguinho dela, e com toda permissão do mundo! Mas que inferno, que merda! Ela poderia transar com o tal do Siegfried o quanto quisesse, três noites seguidas, maior lua-de-mel, e sem culpa, mas-que-beleza! Sem culpa porque o imbecil do Jac, num momento de desatenção deixou ela ir viajar e em outro, ainda na primeira semana de casado, disse que ela poderia transar com outras pessoas, contanto que fosse totalmente discreta. Nossa! Estava se sentindo um idiota e por responsabilidade própria. Ah, pai-do-céu, desse uma forcinha e não deixasse muita chateação despencar na cabeça do Jac por conta dessas burradas, ou fazesse com que ela achasse o gringo um lixo na cama, em-nome-de-jesus-amém!

O baseado já havia acabado e o capuccinno esfriava. Tomou num gole, antes que o trabalho de montar a cafeteira se tornasse tão inútil quanto sua conversa com deus. E não ia fazer mal enrolar outro pra fumar, né? Não ia trabalhar mesmo... O problema era dixavar o fumo já que tinha queimado as pontas dos dedos. Pensou em pegar uma tesoura mas desistiu; sim, doía e o fumo muito prensado estava fazendo arder demais, mas até que não era ruim. Uma dorzinha de nada, até distraía... Mas nada melhor pra distrair do que o corpinho musculoso da Lívi só de calcinha se espreguiçando, bem ali, na porta do escritório. Ah, meldelz! Corpo lindo, tão perfeitinho, pelezinha marrom sem nenhuma manchinha sequer...
"Bom diiiiia, lindo! Já vai fumar a essas horas?" – bocejo comprido, mãozinha na frente da boca. Vixi, estava de pé fazia tempo. Tinha ido à academia e malhado um pouco, tinha ido à padoca porque o cream cheese havia acabado, tinha posto em ordem uma papeladinha, estava ali tomando café agora, já tinha até fumado um antes, estava queimado no dedo inclusive...
“Tá bom, então vamo-logo tacar fogo nisso aí que hoje eu não tenho porra-nenhuma pra fazer e tou a fim de ficar lesada”.

Ela mesma acendeu. Não tinha o hábito de fumar, dizia que dava muito sono, mas às vezes até se excedia. Pegava carinhosa a mão do Jac e o levava pra sala, pedia pra se deitarem juntos no sofá. Pro Jac, o estado natural da Lívi estava expresso na carinha que ela fazia naquela hora: olhos poentes perdidos no nada, rosto descansado, a boquinha molhadinha... Mas era foda! Pra baixar os olhos um pouco só e ficar admirando os seios dela era um palitinho. Como eram lindos e firmes e grandes e... E estavam ali, livres, pra qualquer um que precisasse deles. Mas que droga! O Jac queria saber em que ela pensava: seria por acaso em dar pro outro? Ah, não, tomara que não... Mas e se estivesse? E se ela transasse mesmo? Não, isso ia acontecer de qualquer jeito. A questão era outra: e se ela gostasse? "Lindinha, ce vai dar pro seu professor que eu tou sabendo, mas ce promete pra mim que, se gostar muito, nem vai me deixar saber?" Só depois de ter falado foi que o Jac percebeu o ridículo do que estava pedindo (maconha era mesmo um problema, ele perdia a atenção quando estava viajando muito e ficava mais sincero que o recomendável). E a mulher também devia ter achado o pedido muito estranho, porque tossiu e fez cara-de-interrogação. "Mas quem te disse que eu vou dar pro Sea?" Ah, era claro que ia, não precisa ser um gênio pra perceber a tensão sexual que existia entre eles. E ela se espantava: "Tensão... tensão sexual? Que é isso..." O Jac sabia que a Livi não mentia quase nunca e, quando não queria falar a verdade, enrolava até que se mudasse de assunto. Poderia até parar de falar naquilo, mas uma maldade muito familiar levava o Jac a não conseguir. Então, tinha sim uma tensão sexual entre os dois que já devia estar à flor da pele, inclusive. Qualquer um via isso... Pelo jeito com que se olhavam e dançavam, tanta conectividade, tanta afinidade... Até se mexiam de jeitos parecidos...

"Então, lindo, mas você sabe que o Sea é gay, né?" Sabia, era claro que sim, mas até aí, ele, Jac, também era. E daí? "Daí que eu não tou pensando em dar pra ele, é isso. Não acho que vai rolar sexo com o Sea. Pára com isso".

O Jac preferiu se calar sobre o assunto, mesmo sabendo que a Livi estava “enganada” quanto a dormir com o cara. Era melhor pensar em outra coisa, nos peitinhos bonitinhos dela, por exemplo. Ela notou o que ele olhava e veio se sentar no colo, com carinha de tarada. Mas não, o Jac não estava afim. "Por que não, lindo? Ce é sempre tão animadinho..." Nada especial, só não estava afim, gostava de olhar os peitos dela porque eram bonitos, mas não era tesão não. "Ah, que fofinho!" Ela cobria de beijos seu rosto e pescoço, às vezes se comportava feito menina que tinha aprontado e queria agradar o pai pra não haver zanga. Deu um beijo com a boca bem molhada, bem molinha e meldelz, como era bom aquele beijinho! O Jac gostava muito de sexo, tinha larga preferência por homens, mas transar apaixonado superava qualquer experiência sempre... E ele estava muito apaixonado. "Vem cá, vai, só um pouquinho..." Olhando pra aquela carinha, nem tinha como dizer não, mas ela teria de dar uma ajudinha, tudo bem? Sim? Ah... E, desculpasse a insistência mas... Se ela por um acaso transasse com o Sea, prometia que voltava pra ele depois? Que voltava sempre?
"Tá bom, gatinho, agora vem cá..." 

16. águas revoltas


O Sea sentia certa eletricidade incomodando seus nervos, havia mais de uma hora que não conseguia se concentrar na aula de inglês que preparava pra o dia seguinte. Alguma coisa fazia com que seus dedos das mãos se movessem compulsivamente, como se tivesse bebido litros de café italiano de uma vez; os lábios tinham um tique também. Não podia dormir e não podia trabalhar: "All the knives seems to lacerate my brain... Fuck!" Não queria chapar também porque ainda não estava bem recuperado da ultima bebedeira. Precisava conversar com alguém e esse alguém bem que poderia ser a Liv ou o Marcos. Era então o caso de abrir o MSN pra ver se os dois estavam on-line. Foi até a cozinha pra pegar alguma coisa pra comer enquanto digitava - um grande copo de chá verde e uma tigelinha cheia de cenouras e erva-doce cortadas em palitinhos, estava ótimo; ajeitou a cama rápido, a comida do lado, abriu o laptop e apoiou no colo, com o intermédio de uma almofadinha. O Marcos não estava on-line, só a Liv.

Ziggy diz:
Hi, Lady X!

Leave diz:
Oioioi, Ziggy! Ziggy eh vc, ne, Sea?

Ziggy diz:
Used 2 b. Kkkk :D

Leave diz:
Fala, td bem?

Ziggy diz:
+ o -, 1/2 nervoso.

Leave diz:
Pq? Pode falar?

Ziggy diz:
Sim, tou aki pra isso mesmo. Ahhhh, sei lá, meu, 1000 coisas.

Leave diz:
1 por vez então. Rsrsrs.

Ziggy diz:
Ok. Uma eh q a nossa apresentação tá chegando e eu sempre fico nervoso mesmo

Leave diz:
+ vc já fez tantas...

Ziggy diz:
Mas tds me deixam assim... Every fuckin 1.

Leave diz:
Mas dai não tem jeito, tem q esperar mesmo. E a outra coisa, o q eh?

Ziggy diz:
Mommy called me, after all this time. She’s coming 2 Br.

Leave diz:
Legal... Ou não?

Ziggy diz:
Still don't know. not sure... just don’t know what to think about it.

Leave diz:
Mas pq?

Ziggy diz:
Ah, eh tenso, ne, Liv. Vc sabe como eh isso de tensão familiar.

Leave diz:
Pois eh... Minha situação com o meu pai eh foda... Essas porra eh foda meeeeeeesmo.

Ziggy diz:
Kkkkkk... Hey, só vc pra me fazer rir mesmo. Mas então, ela vai chegar logo que a gente voltar do RJ, Liv. Vai ficar em casa 2 dias e depois vai pro RJ tb, visitar minha outra mãe, q vc vai conhecer.

Leave diz:
Ah eu vou, eh? Cool.

Ziggy diz:
vc sabe q sim, sua mala. Mas então, a pergunta eh a seguinte, eu tava pensando em dar um jeito em casa, por umas flores em td. Q flor vc acha q eu devia comprar?

Leave diz:
Faz assim, c me diz como ela eh q eu t digo 1 flor.

Ziggy diz:
Well... she's wild and beautiful and lovely and smart and... a little crazy too

Leave diz:
Orkideas e flores do campo e cravos, se ela não tiver rinite alérgica, pq cheiro de cravo eh muito forte. Não compra arranjo pronto, compra as flores soltas, vc eh criativo, vai saber o q fazer. E a propósito, evite usar vestido!

Ziggy diz:
Kkkkk. I'll remember that. Thank's a lot. U r my love.

Leave diz:
Rs. Eh sim, até d +.

Ziggy diz:
U know... I'd like to see u now, sweety.

Leave diz:
Ah, não vai rolar. Também tou com saudade, mas...

Ziggy diz:
Tou sabendo, vc tá com o seu marido viado, ne? Td bem, a gente se v amanha. Mas nada mal ganhar um abç agora.

Leave diz:
Deixa... Depois a gente se v. Mas e o Marcos?

Ziggy diz:
tá legal, vou ligar pra ele depois.

Leave diz:
Lindo, preciso sair agora. Bj. Te +. Ah, e fica bem, tah? Dorme bem.

Ziggy diz:
Bye! X

Durou pouco a conversa, mas foi gostoso. O Sea podia ouvir a voz da Liv enquanto lia o que ela escrevia e era bom, acalmava. Mas não havia dado tempo de mandar a música que ela tinha pedido. Era a músicas deles, tão linda, ele havia posto pra ela dormir numa noite em que se falaram por telefone, ela com insônia... Ah, mas que vontade de ouvir a voz dela cantando, podia ser só um pouco... Mas não, não ia dar. Podia ligar um minutinho só, mas sob que pretexto? Ah, sob nenhum, que se fodesse. Pegou o telefone, discou o número do celular, porque não queria correr o risco do Jake atender.
Chama uma vez, duas, três... "Oi, Sea, fala!" Nada, era que não tinha podido agradecer por ela ter sido gentil. "Ah, que-isso! Tudo certo" E agradecia a dica das flores também. "Flores? Que flores?" Como assim “que flores”? As que ela acabava de indicar pelo MSN. Tava louca? Tinha fumado? "Ahahaha... Ai-meldelz, Sea. Se eu te contar, você vai ficar puto... Mas vamo-lá. Seguinte, agradece o João Carlos então porque foi com ele que você teclou" Como??? "E, eu fui tomar banho e deixei o MSN ligado, você deve ter falado com ele". Sea se sentiu um poço de ácido. Roeu uma cenoura com toda a violência enquanto sentia a vista escurecer. Aquele boyzinho cretino! Fucking-god! A Liv podia passar o telefone pra ele please?! "Sea, deixa!" Nem-fodendo! "Quer mesmo? Então tá, são vocês dois!" ... ... ... O Sea ainda não sabia o que dizer, mas precisava, fosse o que fosse. "Alô, sweety!" (o Jac com voz afetada, pra parecer a do Sea). Alô, barbie! E aí? Tinha se divertido? "Nossa, mas que hostilidade! Tava tentando ser legal!" Ser legal my-ass! Tava era querendo especular a vida da mulher. "Ih, ó você errado de novo... Deixa de ser paranoico. Não foi nada demais, inda te ajudei com as flores, a Livi não manja nada de flores... Ahah..." Mas era claro, né? Tinha que ser a bicha do Jake pra entender de flores... "Ah, escuta, tá nervosinho demais pro meu gosto. O-que-é-que-é? tá tenso por quê? Ficou querendo me comer no MSN e agora tá bravo por quê?" Prestasse atenção, na verdade era o Jake quem tava querendo comer o Sea, que particularmente ainda preferia a Olívia. A propósito, passasse o telefone pra ela de novo. "Não vai dar pra ela falar, Sea, ela tá com a... Com a boca muito ocupada. Uhhh..." E ele tava falado no telefone com outro cara enquanto isso? Mas era muito bicha mesmo! Que-se-fodessem os dois e boa-noite! "Vai, seu doente, vai dormir tocando uma".

O Sea desligou, estava envenenado. Teve vontade de rasgar a cara bonitinha do Jake. Depois, apenas em fazer alguma coisa pra que ele ficasse puto. Comer a Liv bem legal podia ser, mas não queria, pelo menos não por esse motivo, se fosse por isso, era melhor improvisar uma encenação pra ele ficar na dúvida, que é a alma do terror, e o Sea era muito bom com terrorismos. Mas depois começou a gostar de ter raiva do Jake e no instantes seguintes pensou que talvez sair com ele pra dar uns almaços também não seria mal, alguma coisa bem one night stand. Ele era um idiota sim, mas era bonitinho pra caralho, a Livi tinha razão. Quando se encontraram numa festa, o Sea nem acreditou, não se lembrava do Jake tão bonito assim. Não fosse a Livi e o Marcos teria tentado alguma coisa. Provocou um pouco, o Jake achou ruim (que previsível!). Mas havia dançado com a Liv nessa mesma noite, e essa era uma experiência tão sem descrição que apagava quaisquer outras impressões. But she had to go... with him... to him. Ela tinha que ter dormido com o Sea naquela noite, não teve nada a ver ter ido embora. Mas o manipulador-comprador-de-gente monopolizava a Liv, dormia do lado dela todo dia! Sea duvidava que ela se acomodasse no peito dele pra dormir - com o Sea, só poderia dormir se fosse assim. Teve raiva do Jake outra vez, muita raiva, porque ele era dono da mulher mais especial já nascida e nem sabia dar o que ela queria. E ainda precisava esfregar na cara de todo mundo que era bofe dela, every fuckin one's face, e ela deixava... Deixava sim! Aquela história de boca ocupada era o que??? Fuck!

A raiva ficou tamanha que se visse qualquer um dos dois na frente, arrebentaria no braço, mesmo que ficasse hospitalizado depois. Passados mais alguns minutos, desejou nunca ter conhecido a Olívia.