13 de dezembro de 2007

2. a brisa pelas pedras


“Jac, eu não quero ouvir isso... por favor, não. Não ouse, nem mesmo pense em me dar alvará pra um relacionamento paralelo ao nosso casamento. Não mesmo!” Tinha a cara vermelha e muito vermelha. Não dava pra saber se de raiva ou de vergonha, mas ele bem que queria adivinhar. Na verdade queria era saber se toda a tensão era por ele estar abrindo mão da exclusividade do corpo dela (e seria o caso de raiva) ou se tinha adivinhado um desejo muito íntimo dela (e então, estaria com vergonha). Pensou em perguntar... Quis perguntar ardentemente! Mas o ardor passou em coisa de segundos, o que não passou foi o sadismo que sentia em ver a mulher toda alterada com assuntos de ordem pessoal... Gostava, adorava!

Mas achava um sadismo amoroso, quase saudável mesmo... Porque gostava dela, gostava muito, queria dar a ela tudo que ela quisesse. Mas ela não gostava de ficar alegre, nem de ser feliz, nem de se sentir livre... Nada, nada disso ela queria, tinha muita certeza. Não tinha como ser muito doce, muito gentil e coisa e tal... Tinha de ser cínico e sarcástico quase todo o tempo, tinha de fazê-la sentir-se exposta, confusa, com medo... pra ela nunca ir embora. Sabia perfeitamente que esse não era o casamento dos sonhos e quando pensava na história toda, chegava a se achar muito cruel mesmo... Mas era difícil, as coisas iam saindo do controle sem que se soubesse exatamente por qual processo, não havia muito jeito de conter. Ficou gostando dela um dia, bem assim: acordou e entendeu que já se importava em demasia pra vê-la chorando e não tomar nenhuma providência, pra bem ou pra mal. Então ficou decidido que daria um jeito de dar a ela tudo quanto precisasse, mesmo que fosse alguma coisa moralmente pouco fácil de tolerar. Era nesse pensamento que estava quando não resistiu mais, armou uma cara bem cretina e desferiu a pergunta à queima roupa, se tinha vergonha por estar a fim do outro ou se tinha raiva pela falta de ciúme.

“Olha, Jac, francamente...” – a cara já não estava tão vermelha. Fazia longas pausas pra falar, devia estar procurando um bom argumento pra resposta – “... francamente... Eu... eu na verdade nem sei o que dizer a respeito disso...” e sorria.

Boa! Boa fuga! Era mesmo impressionante a capacidade que ela tinha pra se desembaraçar. E ainda poderia afirmar com toda a “franqueza” (ela adorava essa palavra!) que estava confusa, que não tinha juízo formado e blábláblá, escapando permanentemente do incômodo e sendo honesta, o que era pior. Achava aquilo completamente irritante, mas era uma sensação muito gostosa de sentir, quase como tentar aparar uma brisa com as mãos e não conseguir, mas gostar por ter sentido o vento alisar pele: essa era Livi, uma brisa fugidia.

Mas tava legal, por essa ela passava. A questão era que essa coisa de ela ser tão boazinha, tão altruísta, tão abnegada... ah, isso não parecia muito saudável não. Não era saudável não senhora! Tinha que parar com isso, mas onde é que já se tinha visto uma coisa dessa? Então ela ia morar com o pai por consideração à mãe, se casava sem amar por consideração ao pai, se privava de ter um caso por consideração ao marido... E quando iria se considerar a si mesma? Nunca? Nunca, né? Se não, perderia a definição enquanto gente, né? Não era isso não? “Não, querido, tá enganado...” Enganado o-caralho! Tinha sim essa vocaçãozinha pra heroína romântica, essa coisa brega de ser problemática e suprimir os próprios desejos por um bem maior, toda mártir. Acordasse, porque a vida ia passando e ela, tadinha... “Mas o que é que você sabe do que eu quero, Jac? Pode me dizer?” Talvez não pudesse dizer mesmo, achava que não, mas tinha certeza de ela não seria feliz se não fosse obrigada por outra pessoa, essa era sua dinâmica... E pra completar, que a queridinha não tentasse e nem pensasse em lhe dizer o que fazer ou lhe proibir qualquer coisa que fosse, que guardasse as proibições pra si própria.

A verborréia devia ter deixado a Livi muito cansada porque não respondeu e foi tratar de fumar antes das últimas palavras do Jac. E ele olhava seus movimentos lentos e descuidados e distraídos e aéreos... Ela quase que flutuava pelas escadas, não se ouviam seus passos pelo piso de madeira, não se via realizar curvas fechadas e sempre, sempre deslizava um dedo pelas paredes enquanto passava, o que provocava um ruidinho que se confundia com o de sua respiração. Todas as vezes que a via passando, Jac se certificava de que a amava e então tentava se lembrar o que nela o havia seduzido; nunca sabia dizer, eram sempre muitas razões diferentes e nenhuma ao mesmo tempo. Foi a única mulher que teve de verdade, talvez fosse a única até o fim da vida – a ideia era essa desde o princípio, só não entendia porque no fim de tudo era tão escravo, se nem ela mesma reivindicava seus sentimentos. Cansou-se de pensar nisso também e achou muito apropriado a Livi lhe ter oferecido o baseado, porque queria descansar, pensar um monte de bobagens, jantar e até fazer sexo, com um pouco de sorte...

Nesse momento, o Jac acaba de permitir abertamente o trânsito da Livi pra muito além do alcance de sua terra e ela vai parar em alguma altura do oceano, longe, perto de alguém que viria a ser a mais arrasadora paixão de sua vida. Mas ele ainda não sabe disso, ele ainda não sabe de nada. Sabe só que precisa relaxar e dar um jeito de a Livi ficar bem boazinha com ele, o que provavelmente daria muito trabalho naquela noite...

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