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...e agora seria obrigado a seguir o desequilibrado pelas
ruas do Bixiga até em casa pra que nada acontecesse a ele, àquelas horas da
madrugada! O Jac devia ter esporrado na cruz em outra encarnação, só podia ser!
Ele não tinha nada, nadinha mesmo a ver com mais aquela crise nervosa do Sieg,
mas ali estava ele, seguindo a bicha louca numa distância segura (claro), para se
assegurar de o outro não ter nenhuma ideia errada no meio do caminho.
Caralho, viu! Se havia uma boa palavra pra resumir o Sieg, essa palavra era neurose, neurose-dançante pra ser mais preciso, já que tinha um vício de dançar quase incontrolável. Aliás, o Sieg não gostava das coisas, ele se viciava simplesmente. E não desgostava também, se apavorava, tinha nojo delas, todo superlativo e hiperbólico (palavrinhas da Olívia falando na cabeça do Jac). O Sieg era sempre alegrinho, meio saltitante até, quase uma gazelinha sorridente, parecia estar num mundo cor-de-rosa, mas a verdade passava bem ao largo disso: não havia um só dia que ele passasse sem se indignar com algum fato, fosse sério ou não. Com ele coisas muito corriqueiras, essas coisas da vida de todo-dia, todas abriam margem pra reflexões que abarcavam conceitos de uma magnitude espetacular e se tornavam discursos terrivelmente bem articulados, com que o Jac só concordava no momento mesmo da realização, depois lhe pareciam absurdos, como pareceriam a qualquer pessoa razoável. Uma vez, nossa, essa tinha sido demais! Uma vez, estavam andando de carro e pararam no sinal, uma mulatinha foi pedir dinheiro e o Jac fechou a janela antes que ela pudesse dizer qualquer coisa – normal, vive-se em São Paulo a final de contas. Mas o Sieg, a louca, fez um escândalo tamanho! Disse que era desumano aquilo, que a menina estava mais do que na ponta dos pés só pra alcançar a janela do imenso castelo sobre rodas, aquele carro que a alimentaria por alguns anos se fosse vendido, e o vidro era erguido na cara dela e se o Jac não queria dar grana, tudo bem, mas tivesse mais educação e putaquepariu, que civilidade era aquela e tudo mais. Mas o pior foi quando o Jac tentou amenizar, dizendo que faria o retorno e pediria desculpas à neguinha. "Vai se desculpar com a neguinha, seu boyzinho escroto filhodaputa? Pra ficar em paz com a consciência neoliberal? Me diz uma coisa, você chamava a Lívia de neguinha também? Ela não é muito mais clara do que a menininha não, nem o cabelo não nega, ela é filha de um negro, você conhece o pai dela melhor que eu!" E a discussão continuou com argumentos que viravam acusações, com acusações que viravam ofensas. E esse era só um dos casos, os múltiplos casos de explosões sociopassionais do Sieg. O que na Livi era arrogância de intelectual do mundo desencantado, no Sieg era a neurótica vocação pra mártir. Chorava e gritava e sofria demais pelo descaso do governo com a educação, pelo fato de o Estado negar às mulheres o direito de abortarem, pela máquina da destruição-universal que era os Estados Unidos, pela sacanagem que era a prefeitura cortar isenção de IPTU de gente pobre por causa da falta de um cadastro, pelo superaquecimento global, cada dia era um motivo diferente, a cada ataque o mesmo desespero de sempre...
E agora, pra que lado tinha ido? Ah, ali, voltava pra Paulista outra vez. Não parecia o caminho da casa dele, será que ia pra balada? Bom, logo descobriria.
A última encrenca que tiveram aconteceu já tinha duas noites e não se falaram desde então. E tinha sido chato, muito mais chato que o habitual, tinha uma britadeira filhadaputa trabalhando madrugada adentro pra arrebentar a Santos toda, em plena terça-feira, sendo que na segunda tinha acontecido a mesma coisa. E o Jac tinha um problema muito sério com o sono, porque quando ficava sem dormir bem por vinte e quatro horas, se tornava irritadiço demais. Ligou pra polícia e foi informado de que era obra pública e teria de resolver com a prefeitura; ligou na central telefônica da prefeitura e foi informado que teria de falar com a companhia de gás, porque a obra era deles; ligou na companhia de gás e foi informado de que a obra era autorizada pela companhia de trânsito e essa, ah, meldelz!, essa não tinha informação pra dar àquelas horas, teria que o expediente começar pra o Jac falar com algum engenheiro responsável e o cacete. A cabeça pra lá de quente, o Jac se sentou na cama enquanto o Sieg dava seu tradicional sorriso irônico, moldado pra situações como aquela. Que se fodesse, ia deixar quieto, não faria caso daquilo, mas caiu na armadilha de se perguntar retoricamente se não havia ninguém no mundo com quem pudesse falar pra dar um jeito naquele barulho infernal. Daí veio a metralhada: “Hey, mr. rich guy, try to buy someone now”… Ria.
E agora, pra onde tinha ido? O Sieg andava meio gingado, às vezes apertava o passo e outras retardava, não era fácil de ser seguido. Ah, a Augusta! Em compensação era alto e branco-pérola a ponto de quase reluzir à noite, também não era difícil de ser encontrado. Mas que volta besta estava dando, devia estar querendo parar em algum boteco e comprar mais droga, bem a cara dele isso.
Depois do gracejo infeliz que o Sieg tinha feito, a coisa ficou insuportável! Não, não deu pra segurar, aquela cara de sarcasmo e a crítica escancarada, não! Como o cretino era superior, né!? O Jac sentiu um desejo obsceno de fazer qualquer coisa pra magoar, pra foder com tudo mesmo! Tinha vontade de bater, mas não achava que daria certo porque o Sieg não se importava em sentir dor. Então teria de fazer alguma coisa pra humilhar mesmo e foi falando, pra se arrepender bastante depois: “Olha, meu amor! Vamo lá! Eu tou sabendo que você tá aí com as suas contas atrasadas e você tá sabendo do meu nojo pelo seu inglês de puta em beira de porto. Então, vamo logo resolver isso, – pegou a carteira no criado mudo, sacou duzentos e trinta reais e jogou bem na cara do Sieg – tem aí uma grana pra você acertar suas contas e pra você pegar um táxi pra sua casa, fica pela trepada de agora a pouco. Agora por favor, veste os seus trapos e some daqui. Queria que eu comprasse alguém? Tá-certo, tou comprando um pouco de paz... Quer mais grana que isso ainda?” Pois é, tinha exagerado na dose... O Sieg não ficou com a grana, obviamente, esticou as notas, todas juntas e acendeu o isqueiro embaixo, segurou até queimar tudo, showzinho básico, depois saiu. Não se falaram mais e muito embora o silêncio causasse uma saudade corrosiva e um tanto de remorso, não se mobilizou pra telefonar.
E na noite de hoje, estava o Jac trabalhando feito condenado, com prazos judiciais de quatro casos quase vencendo e o Sieg aparecia feito um maremoto, chorando e falando várias coisas desconexas... Não, não tinha atenção sobrando naquela noite, pediu pra que ele fosse embora numa boa. “Jake, pelamordedelz, me escuta, aconteceu uma coisa péssima, eu tou pior que lixo...” Contasse amanhã, agora estava foda mesmo, tentasse entender, precisava trabalhar... “Mas ce sempre tem que trabalhar... Então nunca vai dar pra gente conversar...” Sim, daria, mas não agora, e se ele não entendesse, aí sim, aí nunca mais poderiam se falar. Podia ser que tivesse entendido, podia ser que não, o fato era que ele ia saindo lívido, já não chorava mas tinha uma cara que assustava muito mais. O Jac ficou monitorando o caminho dele, da janela do apartamento, até onde a vista alcançava e saiu atrás logo em seguida, com um palpite estranho, quase uma intuição.
Talvez fosse sem fundamento, porque o Sieg virava agora na Peixoto Gomide, devia pegar a Barata Ribeiro, que era rua dele, pelo final, e não ia acontecer nada... Mas porra nenhuma, atravessava a Barata, ia pra São Carlos do Pinhal e o Jac já se cansava de seguir e seguir e seguir, já eram três da manhã. Agora parava no meio do viaduto e olhava a vista da Nove de Julio, era bonito de se ver mesmo, especialmente à noite... E agora? Agora se sentava no parapeito, certo, agora era a hora do Jac correr, era pra isso que estava ali, era sim, e tremia o corpo todo enquanto corria e temia fazer qualquer barulho que assustasse e fizesse o Sieg despencar daquela ponte: estava de pé, do lado de fora do parapeito, não se segurava, uma brisa e cairia.
O Jac se prendeu com força às costas do outro e deu uma ordem pelo vão dos dentes travados: que se inclinasse pra trás devagar e saísse dali imediatamente, e foi obedecido. “Se eu me mato de tristeza, você morre de remorso?” Por favor, estava tão nervoso que nem conseguia abrir a boca, o queixo tava até doendo. Não sabia se matava ele mesmo aquele irresponsável ou se levava pra casa, mas na dúvida, iam pra casa e se fosse o caso, matava o Sieg no dia seguinte. E contasse pelo caminho o que havia acontecido de tão ruim assim; se abraçaram, iam pra casa do Sieg. “Ah, amor, desculpa... Juro que não sabia que você... Ah!” – era a voz do desânimo que antecede a morte mesmo, sem afetação nenhuma – “Eu... Ce... Ce lembra que no sábado ce foi me buscar na aula que eu dou pra molecada da comunidade? Então... lembra que a criançada veio me abraçar porque eu tinha dado umas balas? Teve dois pais que vieram falar comigo depois... Eles viram a gente ir embora junto abraçado... Puta, foi horrível, eles disseram que os moleques não iam mais assistir minha aula e que eu era um pervertido nojento e não podia pegar meninos no colo e que iam dar um jeito de eu não participar mais da escolinha e iam me matar se eu... disseram que me matavam... Mas, Jake, eu juro, eu não peguei no colo por sacanagem, juro... Mas eu... Eu já não sei mais... Talvez eles tenham razão, porque eu... Eu sou desse jeito, não devia tocar em criancinha... Eu não vou mais poder dar aula... Eu tou com nojo de mim...”
Pois bem, dessa vez era sério, sério e muito triste. O Jac tinha interferido na vida da Livi e na própria pra fugir de situações desse tipo... Quis chorar, mas não queria parecer fraco, precisava dar apoio agora... Quis se livrar do peso do mundo de que o Sieg sempre falava, mas sabia que não poderia. Lembrou-se da Livi comentando um poema que dizia que a vida não valia a pena e a dor de ser vivida, lembrou que tinha achado o poema pessimista e até conformista, mas talvez fosse isso mesmo e ele, Jac, trabalhava justamente pra gente que fazia com que viver fosse assim. Era muito ódio por quem só precisava de amor, ele precisava de amor, naquele instante mais que nunca: “Sieg, não pensa mais nisso não! Não pensa nisso nunca mais. Eu sou louco por você, tá? Tá?” – beijava o rosto, as mãos, a boca – “É verdade sim, eu sou completamente apaixonado por você... Porque você é maravilhoso, sim... É sim”. Chegando em casa, se apertaram até que o ar faltasse, fumaram maconha até que o sono viesse e dormiram muito, o Jac nem quis acordar pra trabalhar no dia seguinte.
Caralho, viu! Se havia uma boa palavra pra resumir o Sieg, essa palavra era neurose, neurose-dançante pra ser mais preciso, já que tinha um vício de dançar quase incontrolável. Aliás, o Sieg não gostava das coisas, ele se viciava simplesmente. E não desgostava também, se apavorava, tinha nojo delas, todo superlativo e hiperbólico (palavrinhas da Olívia falando na cabeça do Jac). O Sieg era sempre alegrinho, meio saltitante até, quase uma gazelinha sorridente, parecia estar num mundo cor-de-rosa, mas a verdade passava bem ao largo disso: não havia um só dia que ele passasse sem se indignar com algum fato, fosse sério ou não. Com ele coisas muito corriqueiras, essas coisas da vida de todo-dia, todas abriam margem pra reflexões que abarcavam conceitos de uma magnitude espetacular e se tornavam discursos terrivelmente bem articulados, com que o Jac só concordava no momento mesmo da realização, depois lhe pareciam absurdos, como pareceriam a qualquer pessoa razoável. Uma vez, nossa, essa tinha sido demais! Uma vez, estavam andando de carro e pararam no sinal, uma mulatinha foi pedir dinheiro e o Jac fechou a janela antes que ela pudesse dizer qualquer coisa – normal, vive-se em São Paulo a final de contas. Mas o Sieg, a louca, fez um escândalo tamanho! Disse que era desumano aquilo, que a menina estava mais do que na ponta dos pés só pra alcançar a janela do imenso castelo sobre rodas, aquele carro que a alimentaria por alguns anos se fosse vendido, e o vidro era erguido na cara dela e se o Jac não queria dar grana, tudo bem, mas tivesse mais educação e putaquepariu, que civilidade era aquela e tudo mais. Mas o pior foi quando o Jac tentou amenizar, dizendo que faria o retorno e pediria desculpas à neguinha. "Vai se desculpar com a neguinha, seu boyzinho escroto filhodaputa? Pra ficar em paz com a consciência neoliberal? Me diz uma coisa, você chamava a Lívia de neguinha também? Ela não é muito mais clara do que a menininha não, nem o cabelo não nega, ela é filha de um negro, você conhece o pai dela melhor que eu!" E a discussão continuou com argumentos que viravam acusações, com acusações que viravam ofensas. E esse era só um dos casos, os múltiplos casos de explosões sociopassionais do Sieg. O que na Livi era arrogância de intelectual do mundo desencantado, no Sieg era a neurótica vocação pra mártir. Chorava e gritava e sofria demais pelo descaso do governo com a educação, pelo fato de o Estado negar às mulheres o direito de abortarem, pela máquina da destruição-universal que era os Estados Unidos, pela sacanagem que era a prefeitura cortar isenção de IPTU de gente pobre por causa da falta de um cadastro, pelo superaquecimento global, cada dia era um motivo diferente, a cada ataque o mesmo desespero de sempre...
E agora, pra que lado tinha ido? Ah, ali, voltava pra Paulista outra vez. Não parecia o caminho da casa dele, será que ia pra balada? Bom, logo descobriria.
A última encrenca que tiveram aconteceu já tinha duas noites e não se falaram desde então. E tinha sido chato, muito mais chato que o habitual, tinha uma britadeira filhadaputa trabalhando madrugada adentro pra arrebentar a Santos toda, em plena terça-feira, sendo que na segunda tinha acontecido a mesma coisa. E o Jac tinha um problema muito sério com o sono, porque quando ficava sem dormir bem por vinte e quatro horas, se tornava irritadiço demais. Ligou pra polícia e foi informado de que era obra pública e teria de resolver com a prefeitura; ligou na central telefônica da prefeitura e foi informado que teria de falar com a companhia de gás, porque a obra era deles; ligou na companhia de gás e foi informado de que a obra era autorizada pela companhia de trânsito e essa, ah, meldelz!, essa não tinha informação pra dar àquelas horas, teria que o expediente começar pra o Jac falar com algum engenheiro responsável e o cacete. A cabeça pra lá de quente, o Jac se sentou na cama enquanto o Sieg dava seu tradicional sorriso irônico, moldado pra situações como aquela. Que se fodesse, ia deixar quieto, não faria caso daquilo, mas caiu na armadilha de se perguntar retoricamente se não havia ninguém no mundo com quem pudesse falar pra dar um jeito naquele barulho infernal. Daí veio a metralhada: “Hey, mr. rich guy, try to buy someone now”… Ria.
E agora, pra onde tinha ido? O Sieg andava meio gingado, às vezes apertava o passo e outras retardava, não era fácil de ser seguido. Ah, a Augusta! Em compensação era alto e branco-pérola a ponto de quase reluzir à noite, também não era difícil de ser encontrado. Mas que volta besta estava dando, devia estar querendo parar em algum boteco e comprar mais droga, bem a cara dele isso.
Depois do gracejo infeliz que o Sieg tinha feito, a coisa ficou insuportável! Não, não deu pra segurar, aquela cara de sarcasmo e a crítica escancarada, não! Como o cretino era superior, né!? O Jac sentiu um desejo obsceno de fazer qualquer coisa pra magoar, pra foder com tudo mesmo! Tinha vontade de bater, mas não achava que daria certo porque o Sieg não se importava em sentir dor. Então teria de fazer alguma coisa pra humilhar mesmo e foi falando, pra se arrepender bastante depois: “Olha, meu amor! Vamo lá! Eu tou sabendo que você tá aí com as suas contas atrasadas e você tá sabendo do meu nojo pelo seu inglês de puta em beira de porto. Então, vamo logo resolver isso, – pegou a carteira no criado mudo, sacou duzentos e trinta reais e jogou bem na cara do Sieg – tem aí uma grana pra você acertar suas contas e pra você pegar um táxi pra sua casa, fica pela trepada de agora a pouco. Agora por favor, veste os seus trapos e some daqui. Queria que eu comprasse alguém? Tá-certo, tou comprando um pouco de paz... Quer mais grana que isso ainda?” Pois é, tinha exagerado na dose... O Sieg não ficou com a grana, obviamente, esticou as notas, todas juntas e acendeu o isqueiro embaixo, segurou até queimar tudo, showzinho básico, depois saiu. Não se falaram mais e muito embora o silêncio causasse uma saudade corrosiva e um tanto de remorso, não se mobilizou pra telefonar.
E na noite de hoje, estava o Jac trabalhando feito condenado, com prazos judiciais de quatro casos quase vencendo e o Sieg aparecia feito um maremoto, chorando e falando várias coisas desconexas... Não, não tinha atenção sobrando naquela noite, pediu pra que ele fosse embora numa boa. “Jake, pelamordedelz, me escuta, aconteceu uma coisa péssima, eu tou pior que lixo...” Contasse amanhã, agora estava foda mesmo, tentasse entender, precisava trabalhar... “Mas ce sempre tem que trabalhar... Então nunca vai dar pra gente conversar...” Sim, daria, mas não agora, e se ele não entendesse, aí sim, aí nunca mais poderiam se falar. Podia ser que tivesse entendido, podia ser que não, o fato era que ele ia saindo lívido, já não chorava mas tinha uma cara que assustava muito mais. O Jac ficou monitorando o caminho dele, da janela do apartamento, até onde a vista alcançava e saiu atrás logo em seguida, com um palpite estranho, quase uma intuição.
Talvez fosse sem fundamento, porque o Sieg virava agora na Peixoto Gomide, devia pegar a Barata Ribeiro, que era rua dele, pelo final, e não ia acontecer nada... Mas porra nenhuma, atravessava a Barata, ia pra São Carlos do Pinhal e o Jac já se cansava de seguir e seguir e seguir, já eram três da manhã. Agora parava no meio do viaduto e olhava a vista da Nove de Julio, era bonito de se ver mesmo, especialmente à noite... E agora? Agora se sentava no parapeito, certo, agora era a hora do Jac correr, era pra isso que estava ali, era sim, e tremia o corpo todo enquanto corria e temia fazer qualquer barulho que assustasse e fizesse o Sieg despencar daquela ponte: estava de pé, do lado de fora do parapeito, não se segurava, uma brisa e cairia.
O Jac se prendeu com força às costas do outro e deu uma ordem pelo vão dos dentes travados: que se inclinasse pra trás devagar e saísse dali imediatamente, e foi obedecido. “Se eu me mato de tristeza, você morre de remorso?” Por favor, estava tão nervoso que nem conseguia abrir a boca, o queixo tava até doendo. Não sabia se matava ele mesmo aquele irresponsável ou se levava pra casa, mas na dúvida, iam pra casa e se fosse o caso, matava o Sieg no dia seguinte. E contasse pelo caminho o que havia acontecido de tão ruim assim; se abraçaram, iam pra casa do Sieg. “Ah, amor, desculpa... Juro que não sabia que você... Ah!” – era a voz do desânimo que antecede a morte mesmo, sem afetação nenhuma – “Eu... Ce... Ce lembra que no sábado ce foi me buscar na aula que eu dou pra molecada da comunidade? Então... lembra que a criançada veio me abraçar porque eu tinha dado umas balas? Teve dois pais que vieram falar comigo depois... Eles viram a gente ir embora junto abraçado... Puta, foi horrível, eles disseram que os moleques não iam mais assistir minha aula e que eu era um pervertido nojento e não podia pegar meninos no colo e que iam dar um jeito de eu não participar mais da escolinha e iam me matar se eu... disseram que me matavam... Mas, Jake, eu juro, eu não peguei no colo por sacanagem, juro... Mas eu... Eu já não sei mais... Talvez eles tenham razão, porque eu... Eu sou desse jeito, não devia tocar em criancinha... Eu não vou mais poder dar aula... Eu tou com nojo de mim...”
Pois bem, dessa vez era sério, sério e muito triste. O Jac tinha interferido na vida da Livi e na própria pra fugir de situações desse tipo... Quis chorar, mas não queria parecer fraco, precisava dar apoio agora... Quis se livrar do peso do mundo de que o Sieg sempre falava, mas sabia que não poderia. Lembrou-se da Livi comentando um poema que dizia que a vida não valia a pena e a dor de ser vivida, lembrou que tinha achado o poema pessimista e até conformista, mas talvez fosse isso mesmo e ele, Jac, trabalhava justamente pra gente que fazia com que viver fosse assim. Era muito ódio por quem só precisava de amor, ele precisava de amor, naquele instante mais que nunca: “Sieg, não pensa mais nisso não! Não pensa nisso nunca mais. Eu sou louco por você, tá? Tá?” – beijava o rosto, as mãos, a boca – “É verdade sim, eu sou completamente apaixonado por você... Porque você é maravilhoso, sim... É sim”. Chegando em casa, se apertaram até que o ar faltasse, fumaram maconha até que o sono viesse e dormiram muito, o Jac nem quis acordar pra trabalhar no dia seguinte.
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