“Não, Lavínia, nem pensar...” – dava a sensação de um vácuo bem no vão das costelas que sugava o resto do corpo pra dentro ouvir uma coisa daquelas – “Eu não gosto de falar assim com você, ce sabe disso, mas você folgou demais... Não... Lina, não complica, não retruca que é pior... Nem-mas-nem-meio-mais, vai deitar... vai deitar sim e vai agora. Tá vendo que coisa mais burra é você não fazer cumprir nossos acordos? Agora tem que passar por isso! Olha só, a gente veio pra casa do Sieg, veio pra vocês verem filme até mais tarde numa-boa e agora não vai poder. E por que? Porque eu te falei que queria aquela apostila completa e, além de não fazer nada você ainda tentou me enganar, mocinha. Agora, vai pro quarto! Vai aprender a ter mais respeito pela sua mãe e por mim”. Olhava pra cara do Sieg que tava em pé bem ao lado, devia estar buscando intimamente uma aprovação, mas ele esquivava os olhos, sabendo que a menina também pedia defesa contra o carrasquíssimo pai. Mas o Sieg não tinha jeito pra dar bronca, quando a Lina chorava ele chorava junto, era patético! Agora, por exemplo, tá sentindo o peso do castigo que do Joáo contra si mesmo, como se ele tivesse deixado de cumprir a tarefa. Mas a verdade era que não dava pra desautorizar o João, se ele castigava não era à-toa. Agora a Lina olhava pra o Sieg e o transformava em gelatina, mole e sem-graça e transparente. Mas não podia falar nadinha! Ai-ai-ai, que angústia! Bom, já que ela tinha de ir dormir, podia acompanhá-la até o quarto. “Tio-Zigue, eu não sou criança, não preciso de gente pra me por na cama” – toda ofendida! Nossa, que horror! A senhorita desculpasse, só queria se despedir dela... Não fizesse bico!
“Sieg, eu vou pra varanda, enfia essa menina no quarto e vem pra cá depois rapidinho. E você, não faz cara de zanga, Lina. Te amo, tá?! Me dá um beijo... Ah, não vai dar, malcriada? Então não dá! Vai logo dormir.” Foram, o Sieg a seguindo até o quarto. Ela não devia ficar tão emburrada assim se sabia que o Joáo não ia perdoar pela falta da lição – ele nunca permitia que ela deixasse lição por fazer. “Mas eu não ia dormir fora nem nada, Zigue! Ia só ver filme com você, podia fazer tudo amanhã de manhã... mas ele é mala! Ele gosta de encher, dá mó raiva dele” Não era caso de raiva, mas o Joáo não gostava que tentassem tapear, ainda mais ela-Lavínia. Agora, por-favor, pra não causar mais, ligasse o som baixinho, fizesse aquele exercício de respiração que ele tinha ensinado e dormiria rapidinho. Daí acordava cedo, o Sieg podia ajudar com a lição de inglês e de história (o Siegfried fez questão de aprender história só pra ensinar a ela) e pronto, teriam todo o domingo pra ver filmes – e ele tinha baixado uns ótimos. Tava bem?... Ah!, então tava bom! Repetisse: See you tomorrow! “Tá, Zigue... See you tomorrow”. Selinhos nos lábio e boa-noite.
Ia encontrar o Joáo agora. Mas que mal estar!, precisava falar disso. Tava ali o Joáo, fumando no terraço da casa, de cara pro reflexo das luzes caseiras nas águas da represa. O Joáo tinha voltado a fumar fazia uns tempos, devia estar muito tenso. Tava tenso? “Ah!, tou, cara!... A Lavínia...” – sempre a Lavínia monopolizando a atenção dele – “A Lavínia, ela deve me odiar! A única coisa que eu sei dizer pra ela é não e não e não! Nunca eu deixo nada, eu só treto, ela deve me odiar...” – tava com uma voz de acabado, parecendo um velho no momento mais charmoso da vida que é a meia idade e o Sieg, que tinha um amor quase transcendental pelo Joáo, se sentia corroído por isso – a idade ia chegando e deixando o Siegfried cada vez mais emotivo, quase um babão! Apoiava a mão no ombro do Joáo pra dar uma tranqüilidade: era claro que a Lina não o odiava, ela não odiava ninguém. Era só um pouco impulsiva, meio flutuante, mas ela amava o pai, não precisava ter medo... Mas o Joáo se virava de súbito e o encarava com olhar noturno: “É que eu quero fazer tudo certo, eu quero que ela faça as coisas direito, mas eu não quero ser pra ela o que o meu pai foi pra mim. É lógico que eu nunca odiei o meu velho, mas cara, eu não tenho a conta de quantas vezes eu desejei de Deus abreviasse a vida dele... Sabe... Não sei nem se eu quis de verdade ou não, só sei que quando ele morreu foi um alívio...” – uma voz de mágoa! O Sieg achava que era nóia de ser sempre o super-homem-perfeito em tudo, mas agora dava pra entender a insegurança dele. “Pois-é, Sieg, se não tivesse você pra ser legal com ela, ela ia ser a menina mais sozinha do mundo. E a Livi é legal, mas não sabe brincar nem nada, ela tão séria, eu nem sei do que as duas falam quando tão sozinhas... Eu sou um pai horrível!” Nossa, parasse com a auto-piedade... “Sério, cara! Se alguém como você tivesse perto de mim quando eu era moleque, teria sido muito mais feliz...” A sinceridade do Joáo foi comovente e o olhar do Sieg se encheu de mar – (fosse uns anos atrás, ele não admitiria nada daquela ordem nem que a vida dependesse disso). Desculpasse, esses papos sobre criança emocionavam. Ai!... Mas não se preocupasse, a Lina era louca pelo Joáo, tinha o maior orgulho dele, falava pra todas as amigas que tinha o pai mais bonito e inteligente, amava sim. E ela não era boba, sabia distinguir uma bronquinha de uma sacanagem, sabia até que tava errada nesse caso de hoje. Era esperta a danada! Teve um dia que ela tinha vindo com umas perguntas super... Mas o Joáo já tava fora do ar, dava pra ver pela cara que já não prestava atenção. Longe... Hey, queria o Sieg ali ainda? Preferia ficar sozinho? Não? Queria andar um pouquinho?, podiam descer a estradinha de terra e margear a represa, que tal? Então fossem.
A lua era crescente, fazia um tempo fresco, sem vento e um cheiro gostoso de mato subia, parecia eucalipto ou pinus, sabia lá. Mas o Joáo só queria saber de ver o chão, nem falava... Tava tudo bem? “Parece que sim, mas eu acho que não tou não... Mas não aconteceu nada, nem sei porque-que tou assim, faz tempo...” Certo... Tava tudo bem com a Lívia? “Tá... tudo bem... Ela é... incrível” – voz de desgosto trancando um grito estrondoso no porão do peito. Ah!, ela era incrível? Por que? “Ah, é legal, inteligente... Tá ficando cada dia mais bonita e gostosona... Tá publicando o livro dela... Ela é boa pra Lavínia... Eu é que sou um filho-da-puta... Cara, eu... eu traí ela” – silêncio, silêncio denso de como-assins e por-ques. O certinho do Joáo tinha traído? Era mesmo? “É... Que foda, né? Nesse tempo todo... A gente voltou quando a Lavínia nasceu, vai fazer aí uns treze anos... Nesses treze anos eu tive... quatro casos... E eu acho que a Livi desconfia...” Desconfiava? Como-assim “desconfiava”? A Livi sabia, sabia perfeitamente. Os quatro casos tinham sido com homem, não era? Não era isso? “Ela sabia? E te contou?” – espanto, olhos imensos atrás das lentes de cristal. Sim, ela soube de todos no tempo em que aconteciam e contou pro Sieg porque sempre foram os melhores amigos. Mas ela não tinha ficado triste, só lamentava as tensões que o João passava com os caras, mas entendeu, ela sabia que ele era gay... “Nossa!, eu nunca quis humilhar ela...” e não tinha, ela nunca tinha encarado a coisa assim, pelo-amor-de-deus, né?! “Mas é que pra mim essas coisas não se resolvem fácil assim, Sieg, eu não sou que nem vocês... Você, ela, a Lina...” – mais silêncio reticente... Sob a suave luz lunar os olhos do Joáo não eram tão negros assim e o Sieg teve a sensação que se lançasse qualquer sementinha naquela alma impenetrável, dessa vez brotaria, talvez ele já não fosse tão duro. Curioso: por causa da Livi e da Lina, o Sieg encontrava o Joáo quase toda semana mas eles nunca conversavam, havia anos e anos que não tinham um a-parte, mesmo sendo gentis e alegres e se gostando e tudo-mais. Só agora o Sieg se dava conta do imenso tempo em que estiveram de espíritos divorciados... “Mas e a Livi? Você acha que ela me traiu? Ela te contou?” Ah! Então... Se tivesse sido com ele-Siegfried, seria traição? O Sieg esperava que não porque teve umas tardes de sexo ocasional com a Livi umas de vezes e em todas o João viajava porque o Sieg se recusava a transar sem dormir junto dela depois e sempre muito por-acaso e não teve penetração mesmo na maior parte delas e... “Tá-bom! Eu imagino o que você tiveram”. Então não fizesse aquela cara de ciumento, não tinha nada-a-ver e a última vez tinha sido havia mais de dois anos. Não era ciúme dela, era? “Não, Sieg, não mesmo... Ah!, deixa pra lá. E você, como anda a sua vida?” A voz de cansaço do Joáo quebrava as duas pernas que qualquer um que o conhecia tão enérgico. Mas não falaria mais sobre isso. A vida do Siegfried? Tava bem, tava calma. A Lina tomava quase todo o tempo que tinha pra pensar e isso dava paz lá dentro. E agora também já tava muito acostumado com os remédios, nunca mais tinha deixado de lado depois que a menina nasceu... Uhn... Não tinha mais levado ninguém a sério desde que o Marcos tinha morrido... Cacete, ele fazia uma falta danada! Mas até que tinha superado bem, os remédios ajudavam bastante nessas horas! Andava cansado, não fazia mais balada, só quando ia assistir as apresentações dos alunos... Não fazia muito sexo na verdade, quem diria né? Mas o corpo já dava sinais de cansaço sim... Claros sinais! “Cara, ce não tá transando? Não acredito mesmo, cara, que maus!...” Mas era verdade e fora isso, não tinha muito ânimo pra one-night-stand e nem pra começar um caso do zero... Tava velho, era isso, já tinha passado dos cinqüenta, né? Também não queria namorar gente novinha mas era só o que aparecia, assim preferia ficar sozinho. Mas não era tão maus não, seria se sentisse falta de sexo, mas não sentia. “Sorte a sua, viu! Eu não consigo, eu sinto sim... Achei que ia parar de sentir ficando mais velho mas...” Ah, o Joáo ainda tinha muito tempo até alcançar a idade do Sieg e como ele nunca se estragou nessa vida que-nem o Sieg, era provável que nunca perdesse o clima... Hahahaha! Mas ele e a Livi não andavam transando? Tava achando que sim... “Eu transo com ela... E é legal. Mas eu... Eu nunca tou na-boa, tou sempre pensando em comer mais alguém...” Olhasse, o erro dele era achar que ser marido e pai resolveria a vida e tava se esquecendo de que já era gay muito antes de ser marido e pai, não era? Nunca seria fiel porque não queria mulher, queria homem... Até ele-Sieg, que sempre foi uma louca-assumida, tinha mil vezes mais tara em mulher do que ele! “É, eu sei, eu sei... O Cláudio me falava isso direto... E tava certo, né?” O Cláudio...Tinha sido com aquele japonês um dos casos, né? E por que eles tinham terminado? “Porque eu na verdade... Eu gostava de... de outro cara...”
A última frase do Joáo ficou se roçando no pé-d’ouvido do Sieg, como se soprasse alguma doçurinha no pescoço, lambesse a orelha... Era bom estar com o Joáo ali, em casa, a filha dormindo e a Livi viajando por conta dum congresso. Pareciam um casal, um casal de verdade e não aquela aberração que eram quando estavam juntos, aquele amor difícil, doído, aquele desejo insano. Não, um casal, quase como era com o Marcos. Já fazia tanto tempo que o Sieg estava sozinho que o conforto repentino da situação deu uma narcose na alma que trouxe um sentimento que não tinha nome e nem era sentimento mesmo: um suspiro traduziria o que ele sentia melhor que qualquer palavra e por isso suspirou... Ahhhhhhhhhh... Fundo! Ahhhhh... Ia dar um abraço no Joáo, que se-fodesse se ele pensasse besteira, já não tinha mais tempo a perder se preocupando com o que os outros podem pensar. Abraçou, era bom, muito bom! Olhou no rosto dele, reparava uma certa surpresa ali, uma jovialidade que não havia há cinco minutos atrás, dava pra se ver o pulsar rápido da jugular. E o Sieg também se emocionava mas não tinha nada o que falar. Soltou-se delicado do abraço mas permaneceu segurando na mão.
Agora, depois de vários minutos, ocorria uma questão que talvez ajudasse: ele já tinha pensado em se separar da Lívia? “Ah, já... Já sim, várias vezes. Mas tem a Lina, se eu separasse da Livi ia ficar com quem? Pra ter outra mulher eu prefiro a Livi mesmo, eu gosto dela, a gente se dá bem”. Ah!, a Lina de novo... Olhasse, esse raciocínio faria sentido se a Lina fosse criancinha. Mas ela tava grande, não era ingênua e muito-pelo-contrário, sabia o que era sexo e sabia o que era gente gay. E sabia, inclusive, que o papai e o titio eram bichas. O Joáo nem parecia espantado: “Tou ligado, a Livi que contou essas coisas... Disse que a gente se apaixonava e namorava quem queria, sem ligar se era homem ou mulher, e ela... Ela achou meio normal... Foi um papo que eu ouvi no ano passado. Eu nem achei ruim com a Livi, sempre achei que ia ser melhor ela saber, mas eu não tenho coragem de falar disso com ela...” Que medroso bobo, hein! Riram... riram... riram
de novo. Agora pararam. Mas então, se o problema não era mais a Lina, era só... “Eu não vou terminar com a Livi, só se for pra casar de novo... E eu não vou casar de novo assim, com qualquer um...” O Joáo tinha um olhar firme e hesitante, dava pra farejar medo em redor dele, medo de criança em quarto escuro. Tinha mudado muito nesse meio-tempo em que não se falaram intimamente, tinha perdido o ar impositivo na fala e nos olhos, era mais paciente e menos nervoso, falava em tom mais baixo e menos cáustico... E tinha deixado crescer o cabelo gris e uma barba linda, que aparava com todo cuidado (porque ele nunca deixou de se gostar gostoso!). Naquele momento o Sieg daria tudo pra adivinhar no que o outro atinava. Não quis perguntar pra não ser invasivo, mas depois nem careceu:
“Sieg, eu não sei o que você vai pensar mas... Eu quero saber uma coisa: se eu te pedir em casamento, casamento mesmo, com papel e tudo, você casava?” Ah, nem em mil anos se pode prever uma coisa dessas, nunca, nunca! Meu-deus!, casar com o Joáo? Caralho!!! Tanta imagem rápida e estranha passou pelos fechados olhos naquele segundinho, tantos trechinho de músicas, tantos poemas, tantos filmes... Tanto tudo na vida, tanta vida... Vida que já tinha dividido havia tempos atrás... Vida... Era loucura, só podia ser... “Sieg, é sério, eu só caso se for com você, eu sempre gostei de você, eu não dei certo com os outros porque eu quero você”. Mas como-assim? E todos aqueles anos só se tratando como padrinhos?, maior distância! “Ah!, foi-mal. É que eu sempre tive medo, preferi ficar longe mesmo, mas não precisa ser assim, eu não tou mais com medo...” Tudo-bem, tudo-bem, era que tinha sido muito intensa aquela proposta, tava demorando pra entender... “Então não me entende, me ama. E casa comigo, eu apronto o meu divórcio em coisa de duas semanas e nossa palelada em uma. Daí eu venho morar aqui com você e com a Lina, a Livi fica em casa e vem ver a gente...” Mas esperasse, ainda não tinha casamento gay legalizado no Brasil não-senhor... Ria, sem saber do que, ria... “Declaração de união estável existe pra isso mesmo. Olha, se quiser pensar, tudo bem, mas me fala se quer ou não, se pode ser...”
Pensar porra-nenhuma, era claro que queria!... Era tudo o que queria havia anos!, casar com um dos pais da própria filha (podia até ser c’os dois), porque amava os dois. Mas assim mesmo pediu uma semana de prazo (tendo o cuidado de beijar na boca pra afastar inseguranças): precisava pensar que os depois têm depois, queria dar um jeito de fazer tudo certo dessa vez.
“Sieg, eu vou pra varanda, enfia essa menina no quarto e vem pra cá depois rapidinho. E você, não faz cara de zanga, Lina. Te amo, tá?! Me dá um beijo... Ah, não vai dar, malcriada? Então não dá! Vai logo dormir.” Foram, o Sieg a seguindo até o quarto. Ela não devia ficar tão emburrada assim se sabia que o Joáo não ia perdoar pela falta da lição – ele nunca permitia que ela deixasse lição por fazer. “Mas eu não ia dormir fora nem nada, Zigue! Ia só ver filme com você, podia fazer tudo amanhã de manhã... mas ele é mala! Ele gosta de encher, dá mó raiva dele” Não era caso de raiva, mas o Joáo não gostava que tentassem tapear, ainda mais ela-Lavínia. Agora, por-favor, pra não causar mais, ligasse o som baixinho, fizesse aquele exercício de respiração que ele tinha ensinado e dormiria rapidinho. Daí acordava cedo, o Sieg podia ajudar com a lição de inglês e de história (o Siegfried fez questão de aprender história só pra ensinar a ela) e pronto, teriam todo o domingo pra ver filmes – e ele tinha baixado uns ótimos. Tava bem?... Ah!, então tava bom! Repetisse: See you tomorrow! “Tá, Zigue... See you tomorrow”. Selinhos nos lábio e boa-noite.
Ia encontrar o Joáo agora. Mas que mal estar!, precisava falar disso. Tava ali o Joáo, fumando no terraço da casa, de cara pro reflexo das luzes caseiras nas águas da represa. O Joáo tinha voltado a fumar fazia uns tempos, devia estar muito tenso. Tava tenso? “Ah!, tou, cara!... A Lavínia...” – sempre a Lavínia monopolizando a atenção dele – “A Lavínia, ela deve me odiar! A única coisa que eu sei dizer pra ela é não e não e não! Nunca eu deixo nada, eu só treto, ela deve me odiar...” – tava com uma voz de acabado, parecendo um velho no momento mais charmoso da vida que é a meia idade e o Sieg, que tinha um amor quase transcendental pelo Joáo, se sentia corroído por isso – a idade ia chegando e deixando o Siegfried cada vez mais emotivo, quase um babão! Apoiava a mão no ombro do Joáo pra dar uma tranqüilidade: era claro que a Lina não o odiava, ela não odiava ninguém. Era só um pouco impulsiva, meio flutuante, mas ela amava o pai, não precisava ter medo... Mas o Joáo se virava de súbito e o encarava com olhar noturno: “É que eu quero fazer tudo certo, eu quero que ela faça as coisas direito, mas eu não quero ser pra ela o que o meu pai foi pra mim. É lógico que eu nunca odiei o meu velho, mas cara, eu não tenho a conta de quantas vezes eu desejei de Deus abreviasse a vida dele... Sabe... Não sei nem se eu quis de verdade ou não, só sei que quando ele morreu foi um alívio...” – uma voz de mágoa! O Sieg achava que era nóia de ser sempre o super-homem-perfeito em tudo, mas agora dava pra entender a insegurança dele. “Pois-é, Sieg, se não tivesse você pra ser legal com ela, ela ia ser a menina mais sozinha do mundo. E a Livi é legal, mas não sabe brincar nem nada, ela tão séria, eu nem sei do que as duas falam quando tão sozinhas... Eu sou um pai horrível!” Nossa, parasse com a auto-piedade... “Sério, cara! Se alguém como você tivesse perto de mim quando eu era moleque, teria sido muito mais feliz...” A sinceridade do Joáo foi comovente e o olhar do Sieg se encheu de mar – (fosse uns anos atrás, ele não admitiria nada daquela ordem nem que a vida dependesse disso). Desculpasse, esses papos sobre criança emocionavam. Ai!... Mas não se preocupasse, a Lina era louca pelo Joáo, tinha o maior orgulho dele, falava pra todas as amigas que tinha o pai mais bonito e inteligente, amava sim. E ela não era boba, sabia distinguir uma bronquinha de uma sacanagem, sabia até que tava errada nesse caso de hoje. Era esperta a danada! Teve um dia que ela tinha vindo com umas perguntas super... Mas o Joáo já tava fora do ar, dava pra ver pela cara que já não prestava atenção. Longe... Hey, queria o Sieg ali ainda? Preferia ficar sozinho? Não? Queria andar um pouquinho?, podiam descer a estradinha de terra e margear a represa, que tal? Então fossem.
A lua era crescente, fazia um tempo fresco, sem vento e um cheiro gostoso de mato subia, parecia eucalipto ou pinus, sabia lá. Mas o Joáo só queria saber de ver o chão, nem falava... Tava tudo bem? “Parece que sim, mas eu acho que não tou não... Mas não aconteceu nada, nem sei porque-que tou assim, faz tempo...” Certo... Tava tudo bem com a Lívia? “Tá... tudo bem... Ela é... incrível” – voz de desgosto trancando um grito estrondoso no porão do peito. Ah!, ela era incrível? Por que? “Ah, é legal, inteligente... Tá ficando cada dia mais bonita e gostosona... Tá publicando o livro dela... Ela é boa pra Lavínia... Eu é que sou um filho-da-puta... Cara, eu... eu traí ela” – silêncio, silêncio denso de como-assins e por-ques. O certinho do Joáo tinha traído? Era mesmo? “É... Que foda, né? Nesse tempo todo... A gente voltou quando a Lavínia nasceu, vai fazer aí uns treze anos... Nesses treze anos eu tive... quatro casos... E eu acho que a Livi desconfia...” Desconfiava? Como-assim “desconfiava”? A Livi sabia, sabia perfeitamente. Os quatro casos tinham sido com homem, não era? Não era isso? “Ela sabia? E te contou?” – espanto, olhos imensos atrás das lentes de cristal. Sim, ela soube de todos no tempo em que aconteciam e contou pro Sieg porque sempre foram os melhores amigos. Mas ela não tinha ficado triste, só lamentava as tensões que o João passava com os caras, mas entendeu, ela sabia que ele era gay... “Nossa!, eu nunca quis humilhar ela...” e não tinha, ela nunca tinha encarado a coisa assim, pelo-amor-de-deus, né?! “Mas é que pra mim essas coisas não se resolvem fácil assim, Sieg, eu não sou que nem vocês... Você, ela, a Lina...” – mais silêncio reticente... Sob a suave luz lunar os olhos do Joáo não eram tão negros assim e o Sieg teve a sensação que se lançasse qualquer sementinha naquela alma impenetrável, dessa vez brotaria, talvez ele já não fosse tão duro. Curioso: por causa da Livi e da Lina, o Sieg encontrava o Joáo quase toda semana mas eles nunca conversavam, havia anos e anos que não tinham um a-parte, mesmo sendo gentis e alegres e se gostando e tudo-mais. Só agora o Sieg se dava conta do imenso tempo em que estiveram de espíritos divorciados... “Mas e a Livi? Você acha que ela me traiu? Ela te contou?” Ah! Então... Se tivesse sido com ele-Siegfried, seria traição? O Sieg esperava que não porque teve umas tardes de sexo ocasional com a Livi umas de vezes e em todas o João viajava porque o Sieg se recusava a transar sem dormir junto dela depois e sempre muito por-acaso e não teve penetração mesmo na maior parte delas e... “Tá-bom! Eu imagino o que você tiveram”. Então não fizesse aquela cara de ciumento, não tinha nada-a-ver e a última vez tinha sido havia mais de dois anos. Não era ciúme dela, era? “Não, Sieg, não mesmo... Ah!, deixa pra lá. E você, como anda a sua vida?” A voz de cansaço do Joáo quebrava as duas pernas que qualquer um que o conhecia tão enérgico. Mas não falaria mais sobre isso. A vida do Siegfried? Tava bem, tava calma. A Lina tomava quase todo o tempo que tinha pra pensar e isso dava paz lá dentro. E agora também já tava muito acostumado com os remédios, nunca mais tinha deixado de lado depois que a menina nasceu... Uhn... Não tinha mais levado ninguém a sério desde que o Marcos tinha morrido... Cacete, ele fazia uma falta danada! Mas até que tinha superado bem, os remédios ajudavam bastante nessas horas! Andava cansado, não fazia mais balada, só quando ia assistir as apresentações dos alunos... Não fazia muito sexo na verdade, quem diria né? Mas o corpo já dava sinais de cansaço sim... Claros sinais! “Cara, ce não tá transando? Não acredito mesmo, cara, que maus!...” Mas era verdade e fora isso, não tinha muito ânimo pra one-night-stand e nem pra começar um caso do zero... Tava velho, era isso, já tinha passado dos cinqüenta, né? Também não queria namorar gente novinha mas era só o que aparecia, assim preferia ficar sozinho. Mas não era tão maus não, seria se sentisse falta de sexo, mas não sentia. “Sorte a sua, viu! Eu não consigo, eu sinto sim... Achei que ia parar de sentir ficando mais velho mas...” Ah, o Joáo ainda tinha muito tempo até alcançar a idade do Sieg e como ele nunca se estragou nessa vida que-nem o Sieg, era provável que nunca perdesse o clima... Hahahaha! Mas ele e a Livi não andavam transando? Tava achando que sim... “Eu transo com ela... E é legal. Mas eu... Eu nunca tou na-boa, tou sempre pensando em comer mais alguém...” Olhasse, o erro dele era achar que ser marido e pai resolveria a vida e tava se esquecendo de que já era gay muito antes de ser marido e pai, não era? Nunca seria fiel porque não queria mulher, queria homem... Até ele-Sieg, que sempre foi uma louca-assumida, tinha mil vezes mais tara em mulher do que ele! “É, eu sei, eu sei... O Cláudio me falava isso direto... E tava certo, né?” O Cláudio...Tinha sido com aquele japonês um dos casos, né? E por que eles tinham terminado? “Porque eu na verdade... Eu gostava de... de outro cara...”
A última frase do Joáo ficou se roçando no pé-d’ouvido do Sieg, como se soprasse alguma doçurinha no pescoço, lambesse a orelha... Era bom estar com o Joáo ali, em casa, a filha dormindo e a Livi viajando por conta dum congresso. Pareciam um casal, um casal de verdade e não aquela aberração que eram quando estavam juntos, aquele amor difícil, doído, aquele desejo insano. Não, um casal, quase como era com o Marcos. Já fazia tanto tempo que o Sieg estava sozinho que o conforto repentino da situação deu uma narcose na alma que trouxe um sentimento que não tinha nome e nem era sentimento mesmo: um suspiro traduziria o que ele sentia melhor que qualquer palavra e por isso suspirou... Ahhhhhhhhhh... Fundo! Ahhhhh... Ia dar um abraço no Joáo, que se-fodesse se ele pensasse besteira, já não tinha mais tempo a perder se preocupando com o que os outros podem pensar. Abraçou, era bom, muito bom! Olhou no rosto dele, reparava uma certa surpresa ali, uma jovialidade que não havia há cinco minutos atrás, dava pra se ver o pulsar rápido da jugular. E o Sieg também se emocionava mas não tinha nada o que falar. Soltou-se delicado do abraço mas permaneceu segurando na mão.
Agora, depois de vários minutos, ocorria uma questão que talvez ajudasse: ele já tinha pensado em se separar da Lívia? “Ah, já... Já sim, várias vezes. Mas tem a Lina, se eu separasse da Livi ia ficar com quem? Pra ter outra mulher eu prefiro a Livi mesmo, eu gosto dela, a gente se dá bem”. Ah!, a Lina de novo... Olhasse, esse raciocínio faria sentido se a Lina fosse criancinha. Mas ela tava grande, não era ingênua e muito-pelo-contrário, sabia o que era sexo e sabia o que era gente gay. E sabia, inclusive, que o papai e o titio eram bichas. O Joáo nem parecia espantado: “Tou ligado, a Livi que contou essas coisas... Disse que a gente se apaixonava e namorava quem queria, sem ligar se era homem ou mulher, e ela... Ela achou meio normal... Foi um papo que eu ouvi no ano passado. Eu nem achei ruim com a Livi, sempre achei que ia ser melhor ela saber, mas eu não tenho coragem de falar disso com ela...” Que medroso bobo, hein! Riram... riram... riram
de novo. Agora pararam. Mas então, se o problema não era mais a Lina, era só... “Eu não vou terminar com a Livi, só se for pra casar de novo... E eu não vou casar de novo assim, com qualquer um...” O Joáo tinha um olhar firme e hesitante, dava pra farejar medo em redor dele, medo de criança em quarto escuro. Tinha mudado muito nesse meio-tempo em que não se falaram intimamente, tinha perdido o ar impositivo na fala e nos olhos, era mais paciente e menos nervoso, falava em tom mais baixo e menos cáustico... E tinha deixado crescer o cabelo gris e uma barba linda, que aparava com todo cuidado (porque ele nunca deixou de se gostar gostoso!). Naquele momento o Sieg daria tudo pra adivinhar no que o outro atinava. Não quis perguntar pra não ser invasivo, mas depois nem careceu:
“Sieg, eu não sei o que você vai pensar mas... Eu quero saber uma coisa: se eu te pedir em casamento, casamento mesmo, com papel e tudo, você casava?” Ah, nem em mil anos se pode prever uma coisa dessas, nunca, nunca! Meu-deus!, casar com o Joáo? Caralho!!! Tanta imagem rápida e estranha passou pelos fechados olhos naquele segundinho, tantos trechinho de músicas, tantos poemas, tantos filmes... Tanto tudo na vida, tanta vida... Vida que já tinha dividido havia tempos atrás... Vida... Era loucura, só podia ser... “Sieg, é sério, eu só caso se for com você, eu sempre gostei de você, eu não dei certo com os outros porque eu quero você”. Mas como-assim? E todos aqueles anos só se tratando como padrinhos?, maior distância! “Ah!, foi-mal. É que eu sempre tive medo, preferi ficar longe mesmo, mas não precisa ser assim, eu não tou mais com medo...” Tudo-bem, tudo-bem, era que tinha sido muito intensa aquela proposta, tava demorando pra entender... “Então não me entende, me ama. E casa comigo, eu apronto o meu divórcio em coisa de duas semanas e nossa palelada em uma. Daí eu venho morar aqui com você e com a Lina, a Livi fica em casa e vem ver a gente...” Mas esperasse, ainda não tinha casamento gay legalizado no Brasil não-senhor... Ria, sem saber do que, ria... “Declaração de união estável existe pra isso mesmo. Olha, se quiser pensar, tudo bem, mas me fala se quer ou não, se pode ser...”
Pensar porra-nenhuma, era claro que queria!... Era tudo o que queria havia anos!, casar com um dos pais da própria filha (podia até ser c’os dois), porque amava os dois. Mas assim mesmo pediu uma semana de prazo (tendo o cuidado de beijar na boca pra afastar inseguranças): precisava pensar que os depois têm depois, queria dar um jeito de fazer tudo certo dessa vez.
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