12 de dezembro de 2007

Ato 41

Amor é coisa que a gente não sabe o que é. A gente sai amando, sai falando de amor, sai fazendo amor por aí, sabe até o que é amar mas saber o que é amor, vix, isso é muito difícil! Mas vai chegando uma certa idade em que essas coisas não têm mais muita importância, definições se tornam um palavrório inútil e gastador de tempo. O Sieg sempre foi um cara que pensou muito sobre amor, mas agora não mais, agora ele só amava e quase não realizava os amores. Amava, amava, amava. Amava a Lívia (que agora estava dançando com a Lina lá dentro), amava o Joáo (que agora estava preparando uma salada de verão pro jantar), amava a Lina (que estava sempre em todo lugar, tava lá dentro agora mesmo e já se materializou bem ali, juntinho). Ela assustava aparecendo assim! “Uhn, desculpa, Zigue!” – ela só não chamava de tio quando os pai não viam – “Tou fugindo da mamãe... Ih, ela me achou... Ah!” Gritava e saía correndo. Não custaria pra Livi aparecer... e dito-e-feito: “Sieg, se ela voltar, segura! Ela vai tomar um banho antes de comer, o Jac fica puto quando ela vai jantar suada desse jeito, com terra no pé...” Tava bom, segurava sim... Segurava nada! Hahaha! Gostava de permitir à Lina tudo o quanto queria (era como se vingava do Joáo, que além de ter querido ser pai sozinho, ainda era muito chato com criança!). Talvez fosse infantil da sua parte, mas que se-fodesse!

Pelo menos o Joáo não afastou o Sieg do convívio deles – isso acontecendo teria dado à vida um rumo bem outro, talvez nem estivesse vivo até agora (cuidar-se de-verdade foi um compromisso que assumiu com o Joáo logo que a Lina nasceu: ela tinha que viver no meio mais saudável possível). E foi muito bom, tendo por parâmetro o que a vida do Sieg foi até então, nada podia ser melhor do que estar sempre bem e pertinho da Lina... E dos pais também, como não? Mas o que o Siegfried queria mesmo era viver junto, morar na mesma casa, ser casado com eles dois e pai da Lina. Mas, como diria o Joáo, essa era questão cujo mérito era prejudicado: era libertarismo demais pra cabecinha burguesa do bom-pai-de-família (ele ia chamar de libertinagem, o nojentinho, hahaha). Mas tudo bem, fosse como fosse eram uma familinha muito simpática. Se dava muito bem com o Joáo, embora ele fosse um tanto distante sempre. Se dava muito bom com a Livi, ouvindo e chorando mágoas com ela e até dando uma namoradinha esporádica e sem conseqüências, bem raramente... Mas era a menina que valia a pena mais que tudo, ela era linda, tão linda, inteligente, tão viva! E o amava por tudo e por nada. Era isso: ela esverdeava o futuro, reluzia o presente e justificava o passado (passado tão íntimo que nem ele conhecia direito). Cada dia, cada mau-passo, cada alegria, cada instante de prazer, cada informação, tudo que havia vivido, tudo, tudo havia sido preparação, pintura do cenário espiritual onde a Lina atuaria até que sua luz dos olhos não mais pudesse brilhar a sobre ela, o dia do fim dessa porra-toda tão destemperada que é a vida.

“Oiêêêêêê! Voltei, a mamãe me achou, me lavei rapidinho e a gente vai jantar. Mas será que você convencia o papai a fazer tipo jantar americano? Porque eu não queria ir pra mesa, queria ficar aqui fora, tá calor...” Claro, podia falar com o Joáo, mas se ele dissesse não, era não, tava bom? – franzia os olhos e exibia os perfeitos dentinhos num sorriso extasiante! Nossa, que menina! Iam pra dentro agora, ele na frente, escondendo o corpinho dela. Propunha o jantar no terraço... Mas o Joáo deixava, olha-só, deixava sim! Ele sempre era benevolente, mas só aos fins de semana, esse era ele: austero e correto, mas dava propininha quando convinha, era bom marida e tinha seus casinhos secretos, deixava a filha bagunçar, mas só aos findes... Ele nunca mudaria, ai-ai!...

O jantar foi agradável, a Lavínia atraindo sobre si todos os olhares e suspiros e expressões de admiração, ela era irresistível mesmo! Vinha se tornando parecida com a mãe agora, o corpo, o rostinho... Mas antes, era diferente. Por vezes não dava pra dizer que não era do Joáo, por vezes não dava pra dizer que não era do Siegfried. Hoje ela era a Livi escrita, a não ser pela cor da pele e olhos, Lina-Livi, um poema vivo em eterno movimento. Poderia gastar a vida olhando, olhando pra ela... E não seria vida mal gasta não!

“Sieg, Lina, vamo entrar pra ver filme?” – Lina não queria, preferia tomar o vento da noite, sentar nas pedras perto da represa, ver a lua. Podiam deixá-la com o Siegfried, veriam o filme outra hora. “Tudo bem, sem problema, mas não andem sem sapatos pra imundar a cama de terra”. Em uníssono: tá-bom-papai! E nem bem entraram os dois: “Oba, Zigue! Legal! Faz o Zigue-griot pra mim agora?” Uáu! Fazia tempos que não sentavam fora pra que ele contasse estorinhas – o griot particular dela, vê se pode!, griot particular... Que bom!, reviver a infância dela um pouquinho... E que tipo de estorinha ela queria ouvir? “Alguma que meus pais não podem saber que você contou...” Vix, ela queria era confusão, né? Mas tudo-bem, fossem juntos então trazer lenha pra acender fogueira que uma situação-griot exige fogueirinha.

E foram e acenderam fogo e se sentaram um de frente pro outro, o fogo entre eles, o Sieg de atabaquezinho entre as pernas pra alguns efeitos sonoros incidentes. Pensava agora na melhor história secreta pra se contar, pensava em sua vida, sua própria vida. Seria que ela queria saber? “Quero, começa contando de você e da mamãe que eu sei que vocês namoraram. Porque-que ces não casaram?” Ah!, ele até tinha querido se casar com ela, mas ela teve de morar em outro país por conta do trabalho e quando ela voltou, o tio já namorava outra pessoa... “E você já namorou o papai também?... Não, tem que contar! A mamãe já disse que o papai também namorou com meninos. Você namoravam?” Ai-ai-ai... Tinham se amado muito na verdade, se amado muito mais do que é permitido amar aos simples mortais. Mas não dava certo, eram muito diferentes. Daí o Sieg gostou muito do tio Marcos, lembrava dele? Sim? Bom! Então, e o papai gostou muito da mamãe... Foi a única pra ele, sempre foi só ela. “Ai, conta como aconteceu, deixa de ser chato! Tem chance de eu ser sua filha?” O Sieg, que esperava por aquela pergunta desde o nascimento da garota, não hesitou: ela era filha dele, claro que era, de alma e coração. Agora ouvisse, se queria saber das coisas, não podia ser só isso, tinha que acompanhar toda a extensão do mar, que o mar era muito maior que o que se podia ver da praia. Então... A mamãe já tinha dito o que era Karingana? “É o era-uma-vez da África, né?” Quase isso, é o era-uma-vez de uma das línguas de uma das muitas nações da África. Mas deixasse isso pra lá. Batia os dedos sobre o couro esticado com suavidade, inspirava forte. Karingana-ua-karingana: era uma mulher comunista, de um lugar que não existe mais como ela queria, a Iuguslávia. Ela se mudou pro Senegal, que é na África, e um dia conheceu a tia Aimeé por lá. Elas se apaixonaram e tiveram um filhinho que chamaram de Siegfried. Mas a mulher – o nome dela era Kiska, ela gostava de guerras. Então foi pra África do Sul com mulher e filho, pra fazer política... E de lá pra Moçambique. Mas a Aimeé era uma artista e não tinha estômago pra nada daquilo, queria ser feliz e ser mãe... Foi embora então... Foi pra América... E levou com ela com o Siegfried, esse griot que lhe falava... ... ...



Pronto! Acabou!!! Já-era!!!



FIM

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