12 de dezembro de 2007

Ato 32

Todos os dias, deveríamos ler um bom poema, ouvir uma linda canção, contemplar um belo quadro e dizer algumas bonitas palavras. Era arte, o que o a Livi sempre viveu intimamente e que o Sea saía bradando a qualquer platéia que o quisesse ouvir (mesmo sem gostar muito do Goeth). E o mundo do Sea era o palco... E a arte do Sea era a perfórmance, uma coisa que junta de tudo, poesia e música e pintura e também interpretação e dança, principalmente dança – a Livi amava dançar e quem dançava. Quando ele veio perguntar se queria começar a ensaiar um número com ele porque ela já tinha progredido muito nas aulas, nem pensou pra responder, nem esperou que ele terminasse de falar, nada a deixaria mais contente naquele momento da vida, nem a recuperação do pai, coisa em que a Livi não acreditava mais apesar dos verdes sonhos a respeito. Mas agora não queria nem pensar no pai porque fatalmente se lembraria do Jac em seguida e pensar em Jac era pensar em trabalho e...ah! À puta-que-o-pariu com o trabalho. Ultimamente a Livi tinha se determinado a inverter completamente a idéia da mais-valia, dar um jeito de receber muito mais do que seu trabalho valia, em poucas palavras, bancar a malandrinha no trabalho. Ia chegando atrasada, digitava sem atenção enquanto se comunicava com deus-e-o-mundo pela net, não se preocupava em revisar o que entregava... E nem por desaforo, mas francamente... Ah!, francamente! O Jac sabia que ela detestava aquele trabalho, sabia que ela tava perdendo um tempo bom pra estudar ou pra ensaiar, mas mesmo assim tinha que fazer pose de certinho pros sócios em vez de demitir a Livi de uma vez! Ele sempre tinha tanto bom-senso, não se ligava nisso por que? Que merda, a Livi não queria ter pensado nisso e já estava pensando! Ah-meu!, que se fodesse, que se fodesse mil vezes!

Mas deixava-pra-lá que hoje era noite de quebradeira, ia se acabar de beber, não queria nem saber de nada responsável ou sério ou oficial. E tava agora no camarim teatro com o Sea e a Naomi e o outro carinha... Ela nunca se lembrava do nome dele, então chamava só de Moço. Se enfeitavam, se maquiavam de jeitos divertidos, cheiravam de pó, se vestiam, se despiam e vestiam de novo, bebiam litros de cerveja weiss. E riam, riam muito, riam freneticamente, era muito engraçado o Moço usando um dos vestidos do Sea e mais ainda a Naomi de Chaplin. O Sea já caía bem em qualquer coisa que usasse, podia ser homem ou mulher ou velho ou novo, mas gesticulando daquele jeito, fazia rir também. Nossa!, desde o primeiro ano de faculdade que a Livi não dava tanta risada inconseqüente – pelo menos não com gente trocando de roupa e dando-uns-tiros... Tava se sentindo uma moleca de novo, que nem quando...

“Liiiiiiiiiíviaaaa! Se você não falar em que tá viajando a gente vai te jogar peladinha na 13 de maio, Liviááá! Tell us!!! Don’t leave us, Liv... Hahahahaha!” Era o Sea querendo holofotes, ele sempre queria, sempre tinha ciúmes da atenção dela, não gostava de dividir a Livi com as divagações. Mas nessas horas ela sempre fazia a mesma coisa, dizia que tinha pensamentos aleatórios. “Aleatório de-cu-é-rola! Fala logo, olha só, o Júlio e eu vamos segurar você e a Noemi arranca a sua roupa, depois, vai correr pelada pra gente ver” – abria muito os olhos pra falar e ria e tinha tom de voz diferente do usual. E as brincadeiras continuavam, era agora o Sea que usava vestido, a Naomi encaixava uma peruca de Cleópatra da cabeça acelerada da Livi, que nessas horas considerava que o Jac ainda nem devia ter dado por falta dela em casa de tão metido com o micro que devia estar. Ao mesmo tempo, achava que o Sea parecia às vezes muito novo e outras vezes muito velho e se lembrou de que nunca soube a idade dele nem bem as coisas que ele tinha vivido, ele nunca dizia nada e isso pareceu estranho. No batente da porta de entrada da casa estava escrito Kindergarten, talvez ele tivesse doze anos até hoje! A Noemi é que tava estranha, massageando os ombros da Livi, falando no pé-d’ouvido, será que ela tava dando-em-cima? Não, magina!, isso era raciocínio de homem, só porque ela tava se desmanchando não queria dizer que... Ah, e-daí se tivesse? Até que seria engraçado dar uma puladinha-de-cerca com quem menos o Jac imaginaria, nossa!, ele nem teria o que falar, haha, seria engraçado. O chato era que não sentia muito tesão em meninas e por causa disso a brincadeira seria menos divertida, seria uma coisa mais pro se mostrar... É, não era afim de meninas não...

“Olívia Celeste, eu não acredito que você prefere falar sozinha do que com a gente” – era a Naomi, ruivíssimamente indignada – “De quem que se não é afim, hein?, tá falando aí...” Caramba, nem tinha reparado que tava falando mesmo, achava que tava só pensando. Desculpasse, tava bem? Mas tarde demais, o Sea tinha ouvido a conversa e já vinha encher-o-saco, claro! Ele nunca deixava a Livi quieta (mas ela até que gostava, fazia com que se sentisse especial). Sentou no chão, ao lado dela, passou o braço pela nuca, chegou bem juntinho com o rosto: “Fala, você tava autista, baby? Não? Não tava?” – os lábios tremiam um pouco enquanto ele falava e o sorriso era cada vez mais rasgado – “Fala pra gente, ce não é afim de quem, hein? De mim?”. Não era isso, nada disso! Tava só pensando que não gostava de mulher mas nem sabia... “Certo, e isso quer dizer que você é afim de mim?” Hahahahaha! Muito presunçoso o mocinho! O Sea esticou o braço na direção do Moço: “Ju, vem cá e estica mais quatro carreiras aí que a Livi tá precisando do soro da verdade... Ou melhor, do pó de pirlimpimpim pra gente ter um pensamento feliz e ir voando pra Terra do Nunca... Isso... Tá bom aí, cara, quer matar a gente? Hahahahaha!” Certo, última carreira, porque a Livi não agüentava mais aquela porra, tava dando a maior rinite! E devia ter anfetamina na mistura porque a Livi tava com umas sensações de calor estranhas... Opa, mas carreirinha assim bem-feitinha a gente até admira, hein! Enrolou o canudinho, aspirou, sentiu a narina ardendo e amortecendo... Úi!, uma tremidinha no queixo, uma taquicardia boa, cacete!, quanto anos fazia que não cheirava! Dali a pouco vinha a sinceridade de que o Sea tinha falado e uma afetividade muito espontânea e urgente... Ah, coisa de moleque descobrindo a vida, né?!

“Vai Livi...” Na-não, o Sea que limpasse a lousa antes de continuarem e desse mais cerveja porque tava sequinha de sede. Ah!, agora sim! Falasse. “Então, fala aí, vai” – num super-tom confidencial, meio baixinho, pra assuntos ultra-secretos, enquanto o Moço (que era o Júlio, agora lembrava) tocava Flores Astrais no violão pra ruiva cantar – “Fala pra mim, vai, mas fala mesmo, sem conversinha. Ce daria uns cato comigo, né? Ainda mais que eu tou todo lindo de vestido, uma dama! Ah!, daria, daria sim, olha a cara que se fez... Fala!” Vix... Perguntinha capciosa! Cato assim... como-quem-não-quer-nada, só uma pegadinha pra saber como é que é, assim, bem de leve mesmo, assim... – o Sea se rasgava mostrando os dentes, abria os imensos olhos que quase engoliam a Livi, acompanhava o que ela dizia com meneio de cabeça – ...desse jeito, uma vezinha, umazinha só... É, até que não seria mal não... Um medo de dizer alguma coisa que restasse pra além daquele teatro, nossa-não! Tinha que ser tudo só por hoje, com validade expirando dali a pouco de preferência. Mas era medo bobo, porque o Sea a olhava nos olhos e segurava as mãos tão aberto, fazendo um carinho insinuativo mas lúdico. “Olha, Livi, vou te falar que você é muito linda e muito gostosa e um tesãozinho de gatinha e é mó-desperdício ser tão mal-comida pelo teu marido-viado e... Olha, eu juro que a gente dava umazinha bem-gostoso lá no palco agora mesmo if I could... you know... get it up... Quer dizer, eu tou meio brochado, sabe, esse é que é o problema, depois de todo padê que eu cheirei o meu não sobe nem com macumba, não adianta... Mas se ce quiser a gente pode dar uma brincadinha, numa-boa, assim, só pra você relaxar...” Não-obrigada! Não precisava não, que não tava tão necessitada assim ainda. Se olhavam e sorriam e sorriam mais ainda e começavam a gargalhar e tombavam de lado e não conseguiam parar de rir, boca babando, olhos lacrimejando, falta de ar e a barriga estourando. Ah!, meu-deus! Não pararam de rir por um tempo e quando finalmente conseguiram, o Sea foi pegar a garrafa de cerveja e quando foi virar na boca, se desequilibrou e entornou no próprio vestido e na Livi. Quase se acabaram de rir novamente.

A noite acabou no quase-dia. E o riso? Sabe quando um cavalo tá correndo muito e o cavaleiro puxa o freio com força demais, de modo que o cavalo empina de-repente e começa a babar sem saber o que ouve? Foi como a Livi sentiu quando chegou no quarto e encontrou o Jac acordado, com um livro aberto no colo e os olhos, dois buracos imensos no centro de globos vermelhos. “Tá cedo, moça! Não quis esperar amanhecer pra vir? Olha o perigo de se andar por aí a essas horas... Porque é claro que os seus amiguinhos não te trouxeram de carro, né? É lógico que não, não ouvi barulho nenhum! Aliás, eles tiveram o bom-senso de te trazer? Bom, esquece porque o problema não é meu. O que é problema meu é a droga do trabalho que você anda fazendo. Você acredita que eu fiquei até as três da manhã rescrevendo aquelas merdas que você me entregou? Olívia, o que-que ce tá pensando da vida, hein? Ce não presta atenção em mais nada! Deixa te falar umas coisas sobre a vida, mocinha...”

Pra imenso azar a Livi tinha consumido muita cocaína pra conseguir dormir, então não teve jeito, teve que ouvir o cara falando-falando-falando por mais de duas horas, nem com ela no banho o mala parou de falar.



Nota de algum alterego da sociedade: A citação do começo foi inspiração vinda do blog Caos (link na barra ao lado) e ensejou os escritos do dia.


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