Tava lá o Jac, aproveitando o sol da manhã, pigarreando pelo baseado que acabou de apagar, contemplativo que-só-ele, divagando: gente se engana. Mesmo mantendo os olhos abertos todo o tempo a gente se engana. Mesmo atentando pra cada detalhe a gente se engana. Era por isso que as estatísticas têm margens de erros, né? Parecia que sim. E o Jac precisava aumentar as margens de erros de alguns de seus cálculos; quando se tratava de relações inter-pessoais, precisava trabalhar com margens de erros um tanto quanto largas, por causa de um fator determinante em qualquer equação que envolva gente que o Jac gosta de chamar de índice de indeterminação. Esse índice é dado pelo nível de previsibilidade de uma pessoa: todo mundo é imprevisível em certa medida, mas sempre dá pra gente saber o que esperar de alguém em contrapartida; subtraindo as previsões erradas das certas e tirando porcentagem a gente extrai o número do índice.
O índice de indeterminação do Siegfried era grande, muito grande, o que prejudicava um pouco as possibilidades de desenhar prognósticos, de maneira que o Jac precisava refazer os cálculos referentes a ele esporadicamente. Segundo os mais recentes, as chances de o Sieg e o Jac serem felizes juntos eram de aproximadamente 13 %, com margem de erro de 10 pontos percentuais pra mais ou pra menos; os dados da equação levaram em consideração o número de meses que passaram se relacionando desde que a Livi mudou pra Argentina, as crises de ciúmes que o Sieg insistia em provocar, a necessidade de afirmação do relacionamento que o Sieg insistia em cobrar, as noites em que o Sieg insistia em voltar da balada direto pra casa do Jac (e chagar completamente bêbado e drogado e sem falar coisa-com-coisa), os anti-depressivos de que o Sieg precisava mas insistia em não tomar, as indiscrições que o Sieg insistia em cometer, as mentiras e historinhas absurdas que o Sieg insistia em contar, os amiguinhos simpáticos com quem o Sieg insistia em trepar, entre outras coisas – pois-é, o Sieg tinha umas insistências bem irritantes! Mas além disso ainda tinha o número de vezes que riam juntos de qualquer coisa, que se divertiam dançando, que conversavam sobre coisas interessantes, que enlouqueciam um ao outro na cama, que falavam em crianças (planos que envolviam crianças eram na cabeça-dura do Jac o milagre da água que brota da terra!). Pra cada um desses dados o Jac atribuía um peso distinto; a margem de erro era dada pelo índice de indeterminação do sujeito do momento. Então, as equações do Sieg resultarem num número tão baixo significava que ele era uma pessoa com um potencial pra magoar muito superior ao pra fazer o Jac feliz. Mas a grande verdade era que não precisava de cálculo nenhum pra saber disso, era só ser um pouquinho pragmático.
Nesse minuto o Jac estava sentado na cadeira de balanço da varanda do quarto, a porta descortinada atrás dava vista pro sono de morte do Sieg. Queria ver o sorriso que ele sempre exibia enquanto dormia mas não dava, os óculos pareciam ter as lentes embaçadas, ele tirou e esfregou na blusa pra limpar, experimentou de novo mas nada! Devia estar fraco, já era meio velho mesmo. O Sieg de-longe, dormindo de-ladinho, o cabelo espalhado, o lençol cobrindo o peito, era quase uma mocinha linda e frágil à má vista do Jac. Mas a gente se engana, como se engana! Porque era na fragilidade que conseguia as coisas que queria quase todas, e o Jac não sabia mais se era mesmo fragilidade ou se era dissimulação ou ainda se a fragilidade dele era sua fortaleza – quanto a isso o Jac tinha uma teoria: a de que o Sieg não tomava os remédios pra se manter assim, frágil, mas deixa-quieto isso por ora.
A conquista mais recente do sagaz garoto-donzela tinha sido simplesmente o estatuto de namorado oficial, coisa que o Jac tinha jurado a si mesmo que jamais aconteceria (vê-lá se João Carlos era homem de namorar um desajustado-galinha-drogado!). Os cálculos de probabilidades já tinham se mostrado totalmente contra! Mas o Sieg conseguiu. E mereceu! Foi assim: ele tinha insistido, insistido muito, exagerado na insistência inclusive, pra que fossem juntos à Parada do Orgulho Gay. Mas o Jac não gostava dessas coisas, não se identificava, não tinha orgulho de ser gay e nem vergonha: era gay e pronto. Além do mais, nunca achou que a Parada fosse uma coisa séria, uma verdadeira reivindicação por direitos, achava que era uma balada pra galera sair do armário, tipo uma micareta. Mas o Sieg dizia que não era questão de ser sério ou não, era de se posicionar, de a gente não se deixar marginalizar, que mesmo sendo festa era bom porque não seria festa em zona de tolerância, mas na parte nobre da cidade e coisa e tal, discursinhos!... E o Jac tentou deixar-pra-lá esse papo, mas não deu. Não deu não, a insistência do Sieg transcendeu toda e qualquer chance que o Jac teve pra se preservar, ultrapassou pro lado que não devia, peticionou direto ao supremo tribunal do coração pulando todas as hierarquias racionais possíveis – malandrinho! Depois de todos os pedidos e todos os não-nem-fodendo que o Sieg recebeu do Jac a respeito da parada, chegou uma hora que respondeu: “Mas nem-fodendo mesmo, amor”. Depois passou a semana sem ligar, quando o Jac ligava ele falava educadinho mas não marcava encontro nem aparecia de-repente nem nada, ai-meu-deus, que saudade! Uma falta ardida desse filho-da-puta ia deixando o Jac com gastrite e não teve jeito, pra bem da própria saúde ligava e chamava pra um cinema na sexta, podiam jantar depois e dormir juntos, como vinham fazendo já havia alguns meses. Daí aceitou, mas todo meio distante, bancando amiguinho, não quis saber de nenhum beijo durante o filme, não pôs a mão na perna do Jac enquanto ele dirigia como sempre fazia, não se insinuou... Nossa, e não quis ir pra casa do Jac depois. Por que aquilo tudo? “Ah, Jake, olha... Eu tava pensando que era melhor a gente ser só amigo... se der...” Não, não dava! Tudo isso era por que? “Você é muito intransigente, sabe... Difícil conviver com você... Porra, você nunca cede em nada... Mas eu nem quero continuar isso que seria discutir-a-relação... E a gente não tem uma relação, né? A gente se encontra depois do anoitecer pra se comer... Mas eu não quero mais, eu tou me sentindo muito desmoralizado, tou com a auto-estima baixa, tá foda, cara!...” E o papo foi se dirigindo pra um caminho que conduzia a a gente ter de dormir sozinho, mas o Jac sentiu que se fosse pra casa sem o Sieg passaria mais uma noite em claro com o estômago fritando, um milhão de demônios gritando no ouvido um monte de injúrias e todos teriam a voz do Sieg. Bad-trip do-caralho! Não, o que era que ele tava querendo afinal, fosse mais pragmático. Tava criando caso por causa da Parada? Ah!, era mesmo??? Não, devia ter outra coisa... Era por isso??? Mas por que essa porra era tão importante pra ele? “Não interessa! O que importa é o seguinte: como você trata uma coisa que é importante pra mim. Mas se não rolar, tudo-bem, a gente dá-um-tempo. Vai fazer ou não? É que... É que eu tenho uma coisa pra você mas só vou te dar se você quiser e só pode ser lá... E só pode ser sua também, se não for, não é de mais ninguém”. O que era? Só saberia se fosse, na droga da Parada, claro. Tudo bem então, iria. E foi.
Naquele domingo, foi logo tomando uma dose de uísque pra criar coragem de caminhar com outro homem no meio de três milhões de gays, correndo o risco de algum cliente ou o que o valesse ver e ter historinhas pra contar. Duas, duas doses, duas e meia, porque o Sieg chegou na casa do Jac soltando “We can be heroes” no som e a música causou uma expectativa maior ainda. Já na avenida a tensão foi passando e o Jac, que ia andando de cabeça meio baixa, via o Sieg confiante em seu andar de modelo em passarela e tirando foto de todo mundo que fazia caras-e-bocas. Ele vinha e ia e vinha de novo, dançava, era forte, tinha cara de certeza, imagem de liberdade. Quando o povo se apertou, ele começou a rir muito, estava alegre e vivo como nunca, estava lindo como nunca, uma beleza que contagiava e acabava com o mau-humor de qualquer um. Toda irreverência que o Jac nunca pôde ter, toda graça com que o Jac nunca pôde conviver, todo homoerotismo que o Jac nunca pôde transparecer. Era impossível não se apaixonar. E o que mais a fazer? Se-apaixonar era tudo! (O Fall-in-love seria até uma expressão mais adequada, porque foi como o Jac sentiu: uma queda longa nas profundezas abissais da paixão).
Já era noite quando o Jac se lembrou de que o Sieg queria dar qualquer coisa e mencionou o assunto já um pouco embriagado. Então o Sieg parou no meio do canteiro central da Rua da Consolação, se ajoelhou na frente do Jac e segurou uma das mãos, todo solene, quase um cavaleiro: “Eu tou pedindo a sua mão, Jake. Eu quero você pra meu namorado, de outro jeito não... De verdade”. Ih-fodeu! Essas coisas colocavam a gente comovido como o diabo, nem tinha como recusar. Queria, queria o Sieg sim, pra namorar, pra ficar junto, pra tudo, pra sempre. E o Sieg colocou uma concha de madrepérola na mão do Jac, disse que era o arco-iris do céu dentro de um pedaço do mar, pra que se lembrassem de que o mundo que iam construindo não podia acabar numa tempestade. E o Jac deixou derramar água dos olhos, totalmente secos desde a morte do velho pai.
O índice de indeterminação do Siegfried (que nunca mais foi Sea depois desse dia) cresceu consideravelmente, de forma a aumentar a margem de erro da equação relacional deles de dez pra quarenta pontos percentuais, pra mais ou pra menos... Mas agora o Jac preferia pensar no pra-mais e ver a margem de erro como uma coisa quase mágica, que podia inverter subitamente o sentido de qualquer equação. Como a gente se engana nessa vida, né?! Uma semana atrás o Jac ficaria puto-da-vida se o Sieg aparecesse no escritório pra uma visitinha fora de hora. Agora, molhando as mãos no suor gelado do copo de suco, pensava que a luz do sol incidindo sobre a pele dele o deixa transparente e avermelhado. E que nada é mais arrebatador do que o sol se pondo no mar.
12 de dezembro de 2007
Ato 31
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