O álbum com as fotos do casamento demorou a ficar pronto muito mais do que se imaginava. E ela nem sabia direito porque queria tanto ver essas fotos prontas, mas se pegava pensando nisso distraidamente várias vezes. Talvez fosse pra ver com os olhos como era ser casada, porque sua cabeça e seu sentimento não estavam processando essa informação de forma alguma. As coisas foram acontecendo muito rapidamente, como num romance em que os fatos narrados são tantos que no fim o leitor não se lembra mais de como tudo começou... Perdida e atropelada pela própria história, mas que coisa curiosa. Mas deixava pra lá, deixava... Agora estava largada no lindo sofá de casa e virava as páginas com fotos. Havia usado um vestido simplesmente obsceno na cerimônia civil e na festa, mas não sem protestar muito; o Jac tinha desenhado o modelo e mandado um bom alfaiate costurar: nada mal, conceitual, mas muito provocante. E provocação foi o termo pra aquele casamento, a palavra de ordem do Jac. Era o trio de jazz em vez do quarteto de violinos que o sogro gentilmente se ofereceu pra pagar, era aquele vestido decotadíssimo em vez do modelo singelo que a falecida sogra usou e que o sogro tão gentilmente se ofereceu pra ajustar, era a nata da comunidade gay paulistana presente em vez das pessoas que o sogro tão gentilmente se ofereceu pra convidar e tudo o mais, da comida à tapeçaria. Tudo exaustivo demais pra ela, que estava no meio de um fogo cruzado entre o noivo e o sogro e o que era pior: não tinha podido optar por nada, teve a voz silenciada o tempo todinho. Mas deixava, deixava pra lá sim... Deixava porque o pior , o que havia de mais grosso já tinha passado e havia sido certamente a tomada de consciência das consequências envolvidas naquela escolha. Então... então, examinando bem, era alguém entre a Margarida d’A Dama das Camélias e a Paulina d’O Jogador, era essa a Olívia-do-João-Carlos. Sim, era dele, era propriedade privada dele, pela qual ele havia pagado muito e muito caro e reformado depois da compra, mulher com valor de uso e troca e coisa e tal, partindo quase que pra o fetiche e instrumentalizada, pra completar. Nem acreditava quando formulava assim, parecia estar pensando sobre outra pessoa, nunca sobre si. Mas era a si mesma que estava vendo nas fotos, estava ali, impressa, indelével, inegável. O caminho até ali tinha sido muito confuso e francamente, francamente, não se lembrava dele todo, mas sempre tentava (a gente nunca pode se esquecer do fez a gente ser o que é...). Então revia: o Jac era um conhecido do trabalho e da academia... Era um cara que nadava em grana, coisa que ela nunca teve na vida e com que nunca se importara... Era a doença do papai e a notícia que só se operava nos Estados Unidos... Eram todas as tentativas de empréstimo bancário negadas... Era o Jac, muito bicha, precisando se casar urgentemente pra se dar bem com o pai dele... Era uma proposta indecorosa feita sem pudor e à-queima-roupa que foi aceitando sem pensar muito ou impor condições. Era esse o resumo da história, mas não a história toda... O que tinha feito, meldelsdocel?! Nem havia lhe passado pela cabeça que se tratava de casamento mesmo e não de um trato de aparências, bem novelesco... Nem lhe havia passado pela cabeça que seria a mulher do cara, que dormiria e acordaria com ele todos os dias... todas as noites. Não entendia até agora como tinha se esquecido completamente de perguntar ao Jac se aquele casamento se basearia no sexo, como quase todos são... Não se havia lembrado de perguntar só o mais importante, tomou conhecimento que sim dois dias antes da cerimônia, enquanto provava o vestido de noiva... Ela envergonhada, vestida como uma puta de luxo em leilão de jóias e ele completamente siderado por aquela imagem que, na verdade, ele mesmo havia criado. “Você tá uma diva... Nem eu acredito que tudo isso é meu... – tomou um folegozinho – Aliás, tenta aproveitar sua despedida de solteira porque depois... Cabou a farra!”, isso foi a tensão da história, foi o tapa que a acordou de um transe em que estava já fazia alguns meses... O Jac era mal-e-mal um amigo e agora, maridão, olha só. Teve raiva dele no começo, achou que ele tinha obrigação de ter esclarecido essa coisa estranha de eles dormirem juntos, teve muita raiva, porque ele era gay, caralho! Ele era gay, por que é que tinha de tranzar com ela? “Mas eu nunca falei que não tranzaria, você deve estar louca...” Realmente, nunca disse, mas por que tinha que ser assim, porra? “Me dá um bom motivo pra não dormir com a minha mulher? Ela não quer? Foi se casar por que então? Pelamordedelz, né, Olívia! Te escolhi pra casar porque você não é vulgar que nem as outras meninas que eu conheço, não vai me dizer que você só tá a fim da grana mesmo! Não, nem responde que eu sei que sim, mas se é isso mesmo, problema seu”. O Jac era assim, ia sempre direto ao ponto, uma gracinha, não! Mas deixava pra lá sim... Também, nem ligava muito pra sexo mesmo... Nem ligava... Achava que não pelo menos, mas já nem sabia mais... Fato era que passados dois meses de convivência com ele, não se importava de verdade.
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