“... Nã-não, nada disso, obrigado, só a salada mesmo... E uma taça desse chardonay. Obrigado.” Pousou as mãos sobre a perna cruzada e voltou a armar a cara-de-paisagem adequada pra situações socialmente desconfortáveis: um olhar plácido, um sorriso discreto e uma pequena inclinação de cabeça, que se movia de vez em quando pra declarar alguma atenção à entediante conversa da mesa. Fazia isso bem agora, quando uma menina antipática (namorada de amigo do Jake) perguntava: “Só essa saladinha? Tá de regime? Pára, você é tão magrinho...” Na verdade ouvia mesmo poucas das perguntas, abanava a cabeça pra tudo e alargava um pouco o sorriso vez em quando, mas nem queria saber o que se falava. Boring people, really-really boring! Mas já que não tinha mesmo o que fazer pra se livrar da situação, começava a viajar pra longe, pra Amsterdã, lugar aonde não ia desde muito criança e onde o Chet Baker morreu. Quando se tratava de jazz, o Sea tinha uma admiração especial pelo Chet por causa da que ele tinha capacidade de encontrar o tom em qualquer música, não importava se os músicos trocassem transposições sem avisar, o que já tinha acontecido uma vez, o Chet sempre achava o tom. Ele tinha cantado Funny Valentine uma semana antes de se suicidar...Esse não era definitivamente o melhor som dele, mas o Sea passou a gostar muito porque o Jake dizia que era a música que ouvia pra se lembrar das noites que passavam juntos e costumava tocar no sax por gosto de agradar - e agradava mesmo, agradava bastante. Foi também essa música que o Sea fez questão de tirar no piano quando o Jake acordou no apêzinho da Bela Vista pela primeira vez, coisa que demorou meses pra acontecer. Ele ficou emocionado, cantou uma parte: “But don’t change a hair for me... Not if you care for me... Stay, little valentine, stay”, cantou bonito, olhando pro Sea (que quase morreu de amor), ah!, como ele foi romântico e que difícil de acontecer isso era! Mas não durou muito o clima, claro que não, porque ele não se lembrava de o Sea ter piano em casa e quis saber onde tinha aprendido a tocar. Ah, tinha aprendido sozinho. “Nem-fodendo! Ce fez conservatório lá na Europa ou teve professor?” Tinha aprendido sozinho, tava falando! “Nossa, Sea, porque-que ce é tão mentiroso, hein? Ce mente muito, meu!, mente pra tudo. Ce é compulsivo?” E começava assim uma nova discussão, mais um bate-cabeça pra usar o termo certo, que teve tapas feios como “me admira um advogado ser amante da verdade, deveria ter feito filosofia” e “você mente desse jeito porque nem você mesmo se aceita como é” e “eu não sei por que a sua realidade é melhor que a minha/porque a sua não é real” e “eu minto sendo sincero, você fala a verdade e engana” e “não quero mais falar disso”, essas coisas de sempre. Mas não queria lembrar de briga com o Jake, preferia lembrar do jazz, my funny valentine... sweet comic valentine... you make me smile with my heart... your looks are laughable... Unphotographable… Yet you’re my favorite work of art…
Nossa, desculpasse. O que tinha dito? Não tinha prestado atenção...“Ela perguntou há quanto tempo você ta morando no Brasil” – o Jake. Ah, muito tempo, nem sabia mais, nem lembrava... E nem queria pensar nisso, aquela conversinha era muito besta, ninguém ali tava preocupado em saber da biografia do Sea, tava-na-cara. Perguntavam pra fazer um social e afastar silêncios incômodos mas o Sea não-tava-nem-aí , o problema era que não podia dizer nada disso sob pena de criar-caso e dormir sozinho – e o que a gente não faz por uma bela trepada, não! Mas o Jake tinha uma coisa de bom, ele pegava fácil-fácil as coisas no ar. Agora, por exemplo, ia pegando que o Sea não tinha o melhor ânimo possível e começou a servir de porta-voz, respondendo o que podia cheio de jogo-de-cintura: que o Sea tava de dieta sim e sempre tava, que o Sea tinha uns projetos sociais legais, que o Sea era marxista, que o Sea era meio excêntrico, que o Sea isso-e-aquilo-e-aquilo-outro. “Ele te conhece bem, né? Queria uma amizade assim!” – comentariozinho hipócrita que a patricinha imbecil tinha feito! Sea got enough. Show time! Como era mesmo que ela se chamava? “É Tati. E você é Ziggy? De Ziggy Stardust? É aquela coisa de você ser excêntrico, que nem a sombra que ce passa no olho?” O Jake parecia ter pego perigo no ar, até arregalava os olhões pretos, but too late: “Então... ô Tati, não é de Ziggy Stardust, é de Siegfried. E eu não sou marxista, só não fico satisfeito com nada nessa vida. E eu não tou de dieta, sou anoréxico há mais de quinze anos, desde que eu desfilava, deixei de ser modelo de tanta droga que eu tomei. E eu também não sou excêntrico, tenho transtorno bipolar mesmo. O Jake é que é bonzinho pra me definir... It’s ‘cause I’m his favorite work of art... Tem outra ainda, a gente não é amigo, a gente tem um caso, eu sou bicha, é por isso que ando pintado”, mas disse tudo com a voz mais maviosa, cheio de sorrisos e doçuras, de forma que não dava pra dizer que foi grosseria. Um improviso digno do Chet, hein!, tava até orgulhoso de si. A trouxa ali, com cara de quem-comeu-e-não-gostou, tinha tomado invertida em público porque fez pergunta errada! Very nice! Mas era melhor parar com a masturbação mental e prestar atenção no Jake, que tava olhando duro com um sorriso hermético e isso dava medo.
Se olhavam... se olhavam... se olhavam, de frente um pro outro, a mesa no meio, quatro outras pessoas sentada perto, a patricinha insuportável inclusive. Alguém falava qualquer coisa sobre uma balada que tinha sido inaugurada fazia pouco tempo e sei-que-lá-mais e... Se olhavam... se olhavam ainda: o Jake era iniciado e bem-acabado na arte do terrorismo, puta-que-pariu!, como era! Pro Sea sobrava o dom de atuar como único escudo contra a metralhada visual. Se olhavam... “Com licença, gente. Seag, vem no toillet comigo... Agora.” – era simples assim, ele nunca pedia, mandava, ordenava, e quase todo-mundo obedecia, even rebel-Sea. Foram andando, andando de vagar, o Jake atrás sem dizer nada. O coração do Sea era um tambor de marcha militar que os pés levavam pro pelotão de fuzilamento. Chegaram. O Jake conseguiu fazer com que o Sea se virasse num único puxão de braço e o prendeu contra a parede: “Que ataque de verdades foi aquele lá fora, mocinho, vai explicando!” O Sea procurava o tom do Jake pra poder improvisar novamente mas não deu tempo, porque foi suspenso pelas ancas e teve a boca invadida por um beijo tão longo e intenso que mataria a sede do sertão por um ano. “Vamo sair daqui, eu quero ficar com você agora... na sua casa, como você quiser” – incrível, nenhuma oferta do Jake podia ser mais generosa nessa vida (ele detestava a casa do Sea), oferta realmente irrecusável. Foram. E o Sea ficou quietinho no caminho, pensando sobre os destemperos desse mundo.
12 de dezembro de 2007
Ato 27
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