12 de dezembro de 2007

Ato 24

Todos os dias Olívia Celeste Ares aprende uma palavra diferente, algum nome de coisa que ela já conhece mas que por alguma enunciação se torna nova: escuta alguém falando ou vê alguma atitude e abstrai uma palavra, mas não pode ser qualquer palavra, tem que ser a que sintetize o tópico principal do discurso. Na verdade, não é questão de escolha mas de intuir as adequações, prestando atenção no que se escuta, alguma palavra salta e fica e se mexe-que-remexe na cabeça, o que significa que a gente precisa pensar um pouquinho sobre ela.

Depois de atentar pra palavra, que é a parte fácil, resta pensar no que ela significa, que é a parte difícil. Tem que se lembrar se realmente conhece o significado e a etimologia, de preferência; um dicionário pode ajudar a resolver esse problema. Depois, procura se lembrar da palavra no contexto em que foi dita e em outros contextos diferentes, referências de casos análogos, qualquer coisa assim; a palavra então já fica com tantas camadas de significação diferentes, uma dança de sintagmas e paradigmas que fica impressa na mente. Então vem a parte final, que consiste em anotar a palavra no diário, já ressignificada. Quando ela se lembra do discurso inicial de onde abstraiu a palavra, já não sabe dizer se o que ouviu da pessoa foi ruim ou bom, pode ter sido qualquer coisa porque existem múltiplas possibilidades, escolher uma só seria realizar um julgamento precipitado a respeito de quem falou e nada é pior que julgar os outros, ou seja, reduzir as possibilidades de leitura de alguém.

Quer um exemplo do exercício? A palavra estereótipo. Uma tarde, há muito tempo atrás, era aniversário do pai, teve um samba em casa. A Livi namorava um cara muito simpático na época que, quando começou a tocar Morena de Angola, espalmou a mão na bunda dela e disse: “samba, mulata!!!” – e a Livi não sabia sambar... Mas como assim não sabia? Uma brasileira dengosa daquelas? Pois era verdade, ela não sabia sambar. E algumas primas fizeram absoluta questão de ensinar ao menos uns passos, um gingado, mas nada, a Livi gostava de dançar glam-rock, não tinha jeito pra samba não. Acabou deixando que tentassem ensinar alguma coisa assim mesmo, que remédio? Além do mais, tava todo-mundo se divertindo com aquilo, deixasse pra lá. Na noite seguinte, tinha a palavra: do grego, sterós (= sólido) + týpos (= tipo), uma opinião preconcebida que é compartilhada por todo-mundo, um lugar-comum, o estereótipo, era essa a palavra do namorado pra ela. No diário anotou assim: “Estereótipo: 1. a barra que as pessoas forçam pra homogeneizar quem não se enquadra; 2. eu tendo o samba no sangue, na cara e no pé”.

Mas a Olívia Celeste Ares tem passado por uma crise com isso tudo. É que nessa noite ela descobriu uma palavra nova, peso. E foi triste, muito triste. Ela agora está sentada no parapeito do vão do MASP, com o palmtop na mão, escrevendo sobre peso e se lembrando do ensejo da palavra, a saber, a noite anterior, quando o Sea esteve arrasado por causa da notícia do casamento do Marcos. Recebeu com muita surpresa a nova e se magoou em demasia pra alguém que vivia com outra pessoa havia já quatro meses. Mas esse é o Sea, né, vai entender... Foi pra um bar perto de casa com a Livi, que ficou escutando aquelas lamúrias intermináveis e várias rememorações, aquele blábláblá de bêbado – porque tomava tanta tequila que não demorou meia-hora pra ficar loucasso. Ah, sim! Não bastando, acendeu um baseado e fumou no meio da rua como fosse a coisa mais tranqüila do mundo. Na hora de irem embora, a Livi teve de servir de escora e esse é que foi o problema, porque da Peixoto Gomide (onde estavam) para a Barata Ribeiro (destino final), tinha uma escadinha de ponte no caminho, e o Sea ficou tonto e desmaiou, bem ali. Já passava das três da madrugada, estava frio, começava a garoar. A Livi tentou acordar o Sea como pôde, mas nada. Tomou os sinais vitais e tudo parecia funcionar bem naquele corpo magro... Magro mas pesado. Ela tentou puxar pelos braço, pra que ele acordasse e se levantasse, puxou muito, com muita força mesmo, com toda a força de que dispunha mas ele nem se mexia. E magrinho como era, parecia tão leve! Estava certo, apesar de magro tinha o corpo bem definido, mas nenhum músculo era hipertrofiado, só bem contornado mesmo, não devia pesar assim. Era como tentar carregar água, sempre parece menos pesado do que é de fato. E a noite ia correndo e a chuva engrossando e nenhum viva-alma passando e o crescendo desespero de não ter um celular pra ligar no hospital ou na polícia. Tornava a tentar acordar o Sea, achando que ele tinha entrado em coma alcoólico ou qualquer coisa assim, segurava forte as mão e puxava e puxava e puxava e nada. Ela já não queria ficar ali havia tempo e não podia deixar o Sea, então tentava pensar em coisas aleatórias que não envolvessem o termo tragédia enquanto se encharcava e se resfriava e se doloria inteira sem ter mais o que fazer. Não era possível!
Devia ser por volta das cinco quando ele finalmente acordou, mas bêbado ainda, andava se arrastando na parede por um lado e por outro abraçado à Livi, já se sentindo fraca demais pra dar-conta. Chegou simplesmente extenuada e ficou ainda pior no dia seguinte (o de hoje no-caso) porque pra o Sea, tudo aquilo não passava de um sonho estranho, parecia ter dormido na chuva, não sabia bem como tinha chegado em casa, essa coisa toda.

Mas a Liv não, a Livi sentia o corpo como se tivesse tomado uma surra daquelas e ficou num humor tão lamentável que não podia consigo mesma. Pra completar, chegou no trabalho com cara mal-dormida e teve que agüentar o olhar pretamente fixo do Jac perguntando telepaticamente o que ela tinha. A Livi nunca falava sobre o Sea pro Jac, mas tinha certeza absoluta que ele sabia que estavam vivendo crises conjugais, porque a abraçava muito gentilmente sempre, oferecendo a ajuda que fosse pra tudo quanto precisasse a qualquer hora do dia ou da noite. Tivesse ligado pra ele na noite passada, teria recebido ajuda pra se livrar do P-T que o outro tinha dado. Não teria coragem de pedir jamais mas sabia que receberia ajuda com o peso – o Jac sempre dava-conta mais que ela. Na hora da chuva, com o namorado desacordado no colo e no meio da rua, a Livi desejou ardentemente que o Jac estivesse ali, que fosse forte por eles dois, que a abraçasse e levasse pra casa, que a fizesse se lembrar de como era viver uma rotina normal, tomar café junto comentando o jornal, almoçar junto, ajudar a dar nó em gravata, sair com casais amigos pra ir ao cinema ou jantar... E escutar o sax soando I get along without you very well, o Jac tocava tão bonito! Mas não falou nada sobre isso também, não falou nada e nem falaria: ela nunca falaria sobre aquela noite em toda a vida, a não ser a si mesma, quando tivesse chegado em Pasárgada.

Pasárgada é onde ela está agora e tem vista pra Nove de Julio. Está escrevendo assim: “Peso: do latim pensu. Ônus. Na física, resultante da ação da gravidade sobre os corpos ou gravidade inerente aos corpos. Tudo o que faz pressão. Figurado: tudo o que incomoda ou afadiga; depressão ou opressão; peso morto: aquilo que está inerte e atrapalha; Peso do mar projetado no céu: o Sea”.

Olívia Celeste Ares sentiu apertar a garganta depois e quis chorar mas não chorou (isso ela quase nunca deixava acontecer).

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