Todos os dias Olívia Celeste Ares aprende uma palavra diferente, algum nome de coisa que ela já conhece mas que por alguma enunciação se torna nova: escuta alguém falando ou vê alguma atitude e abstrai uma palavra, mas não pode ser qualquer palavra, tem que ser a que sintetize o tópico principal do discurso. Na verdade, não é questão de escolha mas de intuir as adequações, prestando atenção no que se escuta, alguma palavra salta e fica e se mexe-que-remexe na cabeça, o que significa que a gente precisa pensar um pouquinho sobre ela.
Depois de atentar pra palavra, que é a parte fácil, resta pensar no que ela significa, que é a parte difícil. Tem que se lembrar se realmente conhece o significado e a etimologia, de preferência; um dicionário pode ajudar a resolver esse problema. Depois, procura se lembrar da palavra no contexto em que foi dita e em outros contextos diferentes, referências de casos análogos, qualquer coisa assim; a palavra então já fica com tantas camadas de significação diferentes, uma dança de sintagmas e paradigmas que fica impressa na mente. Então vem a parte final, que consiste em anotar a palavra no diário, já ressignificada. Quando ela se lembra do discurso inicial de onde abstraiu a palavra, já não sabe dizer se o que ouviu da pessoa foi ruim ou bom, pode ter sido qualquer coisa porque existem múltiplas possibilidades, escolher uma só seria realizar um julgamento precipitado a respeito de quem falou e nada é pior que julgar os outros, ou seja, reduzir as possibilidades de leitura de alguém.
Quer um exemplo do exercício? A palavra estereótipo. Uma tarde, há muito tempo atrás, era aniversário do pai, teve um samba em casa. A Livi namorava um cara muito simpático na época que, quando começou a tocar Morena de Angola, espalmou a mão na bunda dela e disse: “samba, mulata!!!” – e a Livi não sabia sambar... Mas como assim não sabia? Uma brasileira dengosa daquelas? Pois era verdade, ela não sabia sambar. E algumas primas fizeram absoluta questão de ensinar ao menos uns passos, um gingado, mas nada, a Livi gostava de dançar glam-rock, não tinha jeito pra samba não. Acabou deixando que tentassem ensinar alguma coisa assim mesmo, que remédio? Além do mais, tava todo-mundo se divertindo com aquilo, deixasse pra lá. Na noite seguinte, tinha a palavra: do grego, sterós (= sólido) + týpos (= tipo), uma opinião preconcebida que é compartilhada por todo-mundo, um lugar-comum, o estereótipo, era essa a palavra do namorado pra ela. No diário anotou assim: “Estereótipo: 1. a barra que as pessoas forçam pra homogeneizar quem não se enquadra; 2. eu tendo o samba no sangue, na cara e no pé”.
Mas a Olívia Celeste Ares tem passado por uma crise com isso tudo. É que nessa noite ela descobriu uma palavra nova, peso. E foi triste, muito triste. Ela agora está sentada no parapeito do vão do MASP, com o palmtop na mão, escrevendo sobre peso e se lembrando do ensejo da palavra, a saber, a noite anterior, quando o Sea esteve arrasado por causa da notícia do casamento do Marcos. Recebeu com muita surpresa a nova e se magoou em demasia pra alguém que vivia com outra pessoa havia já quatro meses. Mas esse é o Sea, né, vai entender... Foi pra um bar perto de casa com a Livi, que ficou escutando aquelas lamúrias intermináveis e várias rememorações, aquele blábláblá de bêbado – porque tomava tanta tequila que não demorou meia-hora pra ficar loucasso. Ah, sim! Não bastando, acendeu um baseado e fumou no meio da rua como fosse a coisa mais tranqüila do mundo. Na hora de irem embora, a Livi teve de servir de escora e esse é que foi o problema, porque da Peixoto Gomide (onde estavam) para a Barata Ribeiro (destino final), tinha uma escadinha de ponte no caminho, e o Sea ficou tonto e desmaiou, bem ali. Já passava das três da madrugada, estava frio, começava a garoar. A Livi tentou acordar o Sea como pôde, mas nada. Tomou os sinais vitais e tudo parecia funcionar bem naquele corpo magro... Magro mas pesado. Ela tentou puxar pelos braço, pra que ele acordasse e se levantasse, puxou muito, com muita força mesmo, com toda a força de que dispunha mas ele nem se mexia. E magrinho como era, parecia tão leve! Estava certo, apesar de magro tinha o corpo bem definido, mas nenhum músculo era hipertrofiado, só bem contornado mesmo, não devia pesar assim. Era como tentar carregar água, sempre parece menos pesado do que é de fato. E a noite ia correndo e a chuva engrossando e nenhum viva-alma passando e o crescendo desespero de não ter um celular pra ligar no hospital ou na polícia. Tornava a tentar acordar o Sea, achando que ele tinha entrado em coma alcoólico ou qualquer coisa assim, segurava forte as mão e puxava e puxava e puxava e nada. Ela já não queria ficar ali havia tempo e não podia deixar o Sea, então tentava pensar em coisas aleatórias que não envolvessem o termo tragédia enquanto se encharcava e se resfriava e se doloria inteira sem ter mais o que fazer. Não era possível!
Devia ser por volta das cinco quando ele finalmente acordou, mas bêbado ainda, andava se arrastando na parede por um lado e por outro abraçado à Livi, já se sentindo fraca demais pra dar-conta. Chegou simplesmente extenuada e ficou ainda pior no dia seguinte (o de hoje no-caso) porque pra o Sea, tudo aquilo não passava de um sonho estranho, parecia ter dormido na chuva, não sabia bem como tinha chegado em casa, essa coisa toda.
Mas a Liv não, a Livi sentia o corpo como se tivesse tomado uma surra daquelas e ficou num humor tão lamentável que não podia consigo mesma. Pra completar, chegou no trabalho com cara mal-dormida e teve que agüentar o olhar pretamente fixo do Jac perguntando telepaticamente o que ela tinha. A Livi nunca falava sobre o Sea pro Jac, mas tinha certeza absoluta que ele sabia que estavam vivendo crises conjugais, porque a abraçava muito gentilmente sempre, oferecendo a ajuda que fosse pra tudo quanto precisasse a qualquer hora do dia ou da noite. Tivesse ligado pra ele na noite passada, teria recebido ajuda pra se livrar do P-T que o outro tinha dado. Não teria coragem de pedir jamais mas sabia que receberia ajuda com o peso – o Jac sempre dava-conta mais que ela. Na hora da chuva, com o namorado desacordado no colo e no meio da rua, a Livi desejou ardentemente que o Jac estivesse ali, que fosse forte por eles dois, que a abraçasse e levasse pra casa, que a fizesse se lembrar de como era viver uma rotina normal, tomar café junto comentando o jornal, almoçar junto, ajudar a dar nó em gravata, sair com casais amigos pra ir ao cinema ou jantar... E escutar o sax soando I get along without you very well, o Jac tocava tão bonito! Mas não falou nada sobre isso também, não falou nada e nem falaria: ela nunca falaria sobre aquela noite em toda a vida, a não ser a si mesma, quando tivesse chegado em Pasárgada.
Pasárgada é onde ela está agora e tem vista pra Nove de Julio. Está escrevendo assim: “Peso: do latim pensu. Ônus. Na física, resultante da ação da gravidade sobre os corpos ou gravidade inerente aos corpos. Tudo o que faz pressão. Figurado: tudo o que incomoda ou afadiga; depressão ou opressão; peso morto: aquilo que está inerte e atrapalha; Peso do mar projetado no céu: o Sea”.
Olívia Celeste Ares sentiu apertar a garganta depois e quis chorar mas não chorou (isso ela quase nunca deixava acontecer).
Depois de atentar pra palavra, que é a parte fácil, resta pensar no que ela significa, que é a parte difícil. Tem que se lembrar se realmente conhece o significado e a etimologia, de preferência; um dicionário pode ajudar a resolver esse problema. Depois, procura se lembrar da palavra no contexto em que foi dita e em outros contextos diferentes, referências de casos análogos, qualquer coisa assim; a palavra então já fica com tantas camadas de significação diferentes, uma dança de sintagmas e paradigmas que fica impressa na mente. Então vem a parte final, que consiste em anotar a palavra no diário, já ressignificada. Quando ela se lembra do discurso inicial de onde abstraiu a palavra, já não sabe dizer se o que ouviu da pessoa foi ruim ou bom, pode ter sido qualquer coisa porque existem múltiplas possibilidades, escolher uma só seria realizar um julgamento precipitado a respeito de quem falou e nada é pior que julgar os outros, ou seja, reduzir as possibilidades de leitura de alguém.
Quer um exemplo do exercício? A palavra estereótipo. Uma tarde, há muito tempo atrás, era aniversário do pai, teve um samba em casa. A Livi namorava um cara muito simpático na época que, quando começou a tocar Morena de Angola, espalmou a mão na bunda dela e disse: “samba, mulata!!!” – e a Livi não sabia sambar... Mas como assim não sabia? Uma brasileira dengosa daquelas? Pois era verdade, ela não sabia sambar. E algumas primas fizeram absoluta questão de ensinar ao menos uns passos, um gingado, mas nada, a Livi gostava de dançar glam-rock, não tinha jeito pra samba não. Acabou deixando que tentassem ensinar alguma coisa assim mesmo, que remédio? Além do mais, tava todo-mundo se divertindo com aquilo, deixasse pra lá. Na noite seguinte, tinha a palavra: do grego, sterós (= sólido) + týpos (= tipo), uma opinião preconcebida que é compartilhada por todo-mundo, um lugar-comum, o estereótipo, era essa a palavra do namorado pra ela. No diário anotou assim: “Estereótipo: 1. a barra que as pessoas forçam pra homogeneizar quem não se enquadra; 2. eu tendo o samba no sangue, na cara e no pé”.
Mas a Olívia Celeste Ares tem passado por uma crise com isso tudo. É que nessa noite ela descobriu uma palavra nova, peso. E foi triste, muito triste. Ela agora está sentada no parapeito do vão do MASP, com o palmtop na mão, escrevendo sobre peso e se lembrando do ensejo da palavra, a saber, a noite anterior, quando o Sea esteve arrasado por causa da notícia do casamento do Marcos. Recebeu com muita surpresa a nova e se magoou em demasia pra alguém que vivia com outra pessoa havia já quatro meses. Mas esse é o Sea, né, vai entender... Foi pra um bar perto de casa com a Livi, que ficou escutando aquelas lamúrias intermináveis e várias rememorações, aquele blábláblá de bêbado – porque tomava tanta tequila que não demorou meia-hora pra ficar loucasso. Ah, sim! Não bastando, acendeu um baseado e fumou no meio da rua como fosse a coisa mais tranqüila do mundo. Na hora de irem embora, a Livi teve de servir de escora e esse é que foi o problema, porque da Peixoto Gomide (onde estavam) para a Barata Ribeiro (destino final), tinha uma escadinha de ponte no caminho, e o Sea ficou tonto e desmaiou, bem ali. Já passava das três da madrugada, estava frio, começava a garoar. A Livi tentou acordar o Sea como pôde, mas nada. Tomou os sinais vitais e tudo parecia funcionar bem naquele corpo magro... Magro mas pesado. Ela tentou puxar pelos braço, pra que ele acordasse e se levantasse, puxou muito, com muita força mesmo, com toda a força de que dispunha mas ele nem se mexia. E magrinho como era, parecia tão leve! Estava certo, apesar de magro tinha o corpo bem definido, mas nenhum músculo era hipertrofiado, só bem contornado mesmo, não devia pesar assim. Era como tentar carregar água, sempre parece menos pesado do que é de fato. E a noite ia correndo e a chuva engrossando e nenhum viva-alma passando e o crescendo desespero de não ter um celular pra ligar no hospital ou na polícia. Tornava a tentar acordar o Sea, achando que ele tinha entrado em coma alcoólico ou qualquer coisa assim, segurava forte as mão e puxava e puxava e puxava e nada. Ela já não queria ficar ali havia tempo e não podia deixar o Sea, então tentava pensar em coisas aleatórias que não envolvessem o termo tragédia enquanto se encharcava e se resfriava e se doloria inteira sem ter mais o que fazer. Não era possível!
Devia ser por volta das cinco quando ele finalmente acordou, mas bêbado ainda, andava se arrastando na parede por um lado e por outro abraçado à Livi, já se sentindo fraca demais pra dar-conta. Chegou simplesmente extenuada e ficou ainda pior no dia seguinte (o de hoje no-caso) porque pra o Sea, tudo aquilo não passava de um sonho estranho, parecia ter dormido na chuva, não sabia bem como tinha chegado em casa, essa coisa toda.
Mas a Liv não, a Livi sentia o corpo como se tivesse tomado uma surra daquelas e ficou num humor tão lamentável que não podia consigo mesma. Pra completar, chegou no trabalho com cara mal-dormida e teve que agüentar o olhar pretamente fixo do Jac perguntando telepaticamente o que ela tinha. A Livi nunca falava sobre o Sea pro Jac, mas tinha certeza absoluta que ele sabia que estavam vivendo crises conjugais, porque a abraçava muito gentilmente sempre, oferecendo a ajuda que fosse pra tudo quanto precisasse a qualquer hora do dia ou da noite. Tivesse ligado pra ele na noite passada, teria recebido ajuda pra se livrar do P-T que o outro tinha dado. Não teria coragem de pedir jamais mas sabia que receberia ajuda com o peso – o Jac sempre dava-conta mais que ela. Na hora da chuva, com o namorado desacordado no colo e no meio da rua, a Livi desejou ardentemente que o Jac estivesse ali, que fosse forte por eles dois, que a abraçasse e levasse pra casa, que a fizesse se lembrar de como era viver uma rotina normal, tomar café junto comentando o jornal, almoçar junto, ajudar a dar nó em gravata, sair com casais amigos pra ir ao cinema ou jantar... E escutar o sax soando I get along without you very well, o Jac tocava tão bonito! Mas não falou nada sobre isso também, não falou nada e nem falaria: ela nunca falaria sobre aquela noite em toda a vida, a não ser a si mesma, quando tivesse chegado em Pasárgada.
Pasárgada é onde ela está agora e tem vista pra Nove de Julio. Está escrevendo assim: “Peso: do latim pensu. Ônus. Na física, resultante da ação da gravidade sobre os corpos ou gravidade inerente aos corpos. Tudo o que faz pressão. Figurado: tudo o que incomoda ou afadiga; depressão ou opressão; peso morto: aquilo que está inerte e atrapalha; Peso do mar projetado no céu: o Sea”.
Olívia Celeste Ares sentiu apertar a garganta depois e quis chorar mas não chorou (isso ela quase nunca deixava acontecer).
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