Estavam nuas, completamente nuas, deitadas sob o sol que incidia na cama de casal, uma sobre o corpo da outra, enlaçadas. Era um prazer tão delicado estar ali, apenas estar, sentir quente na pele a respiração dela e constatar a cada segundo que estava viva e emanava vida pelas narinas... E também pelo pulsar das veias mornas e pelo brilho dos longos cabelos. Tão linda, tão linda... Como era linda, linda de vida. Ela agora mudava de posição, apoiava os dois bracinhos nas costelas da Livi e checava seu rosto com uma curiosidade divertida, abria os imensos olhos de mel que devoravam a cara toda da gente, a gente se sentia dentro dela sob o efeito daquele olhar, era como se o mundo dela se fosse enchendo da gente e de tudo mais que ela engolia com as ajustáveis pupilas de gata. Examinava a Livi com cuidado de cirurgiã... Agora descerrava os finos labiozinhos, diria alguma coisa certamente (a Lavínia não conseguia estar sem falar por muito tempo). “Você não tem cara negra de verdade... Nem boca, nem nariz... Nem a cor do olho, só o formato mesmo, e a pele...” – e os comentários dela eram sempre imprevisíveis! Ah, não tinha mesmo porque não era negra, era mulata. A mãe era branca, os avós eram franceses, só o pai que era negão. Mas ela-Livi não se identificava muito com coisas da França porque não teve contato nenhum com a família da mãe. “E... que-que é se-identificar? É tipo coisa de identidade?” Olha, mas que espertinha!!! As palavras vinham do mesmo lugar mesmo! Identidade de documento era o papel que dizia que a gente era igualzinho à foto e o nome que tava ali o governo reconhecia. Agora, isso que ela tinha dito era o seguinte: se a gente via num lugar ou numa pessoa ou num povo umas coisas que a gente acha que faria bem igual ou de que gosta por se parecer, era que a gente se identificava com a pessoa ou o povo ou o lugar, tava entendendo? Os olhinhos amarelos giravam para todos os lado e sorriam, sem que a boca acompanhasse. Sim, havia entendido... Tão inteligente! “Unh... Eu acho o papai mais bonito, mas eu acho que identifico mais com o Tio-Zigue”. A Livi deu um sorrisinho, era ME-identifico, tinha que falar assim. Mas tinha entendido, era isso sim, se ela se achava mais parecida com o Sieg era porque se identificava com ela. “Mas o papai é mais bonito”. Ah!, ele era lindo sim, sempre foi. Ela-mamãe, a primeira vez que o viu achou a coisa mais bonitinha desse mundo, ele parecia ator de Hollywood. Os olhos de mel continuavam caminhando, agitados. “O Tio-Zigue falou que Hollywood só faz filme ruim com ator canastrão, hahaha!” Ai!, não era só assim, o tio Sieg era muito chato! Mas, lá-entre-elas, o papai tinha mesmo um puta jeito de canastrão, hahaha! Mas as mulheres gostam de canastrões, todas elas. Ela-Lavínia um dia ia ficar gostando de algum também... Riam. Livi deu um tapinha na perna da Lavínia, pra que ela se sentasse, porque estava ficando pesada demais. Melhor agora, estavam uma em frente a outra, podiam se olhar. E a mamãe, era bonita também? A opinião da menina era tão importante pra Livi! Foi se tornando à medida em que ela crescia. Livi sempre gostou de ser bonita, mas com a Lavínia era diferente, com a Lavínia podia estar nua, muito nua, como sempre havia gostado de estar. As duas, nuas, se vendo e brincando de descobrir mudanças nos corpos, a nudez dessexualizada e bela e fresca, o amor porque a Livi procurou por toda sua vida, beleza de ser e estar. E a Lavínia, meu-deus, tava se tornando uma moça linda! Os seiozinhos despontando acima de uma cinturinha tão fina, os quadris já acentuados, a bundinha bem redondinha, os braços longos e os cabelos, nossa-senhora, que cabelos ela tinha!, pretos-muito-pretos, ondulados, rebeldes, emoldurando a cara clara. Seria uma verdadeira deusa em menos de três anos e a Livi se enchia de jovialidade e alegria, resgatava toda a beleza de sua vida, esparsa sem presença feminina.
A Livi se sentiu culpada por muitos anos da vida, por não saber onde se encaixar na vida da Lavínia: o Jac, o Jac era prático, cuidava das tarefas dela, das broncas, das questões de escola e de socializar com outros pais, ajudava a estudar, impunha limites. O Siegfried foi morar com ela no reino das fantasias, sabia toda a sorte de brincadeiras e musiquinhas, conhecia os desenhos de que ela gostava, levava ao cinema e ao teatro e ao parquinho, contava histórias que inventava na hora, todas diferentes umas das outras, se pintava todo e criava personagens, mas sempre tendo o cuidado de conversar com a Livi e o Jac o que podia ou não ser dito e ser feito, mesmo depois de se terem separado. E ela-Livi? Ela não tinha o que o oferecer. Não era muito ciosa pra tomar conta ou chamar atenção, não era muito lúdica pra divertir... Achou por muito tempo que a menina era de fato filha do Sea com o Jac e ela apenas emprestou o útero, foi como sentiu, mesmo porque, quando bebê a menina não se parecia nada-nada com ela e só gostava de estar com o Jac ou o Sea. Dava medo, dava mágoa... Mas a garota foi crescendo e a partir dos nove anos, não quis mais ser o moleque que vinha sendo, sentiu necessidade de ser bonita, de ser uma mulherzinha mesmo. Sim, isso sim, era isso, eram mulheres, as duas... Lindas! Olívia então a ensinava a dançar, ensinava a se arrumar e tempos depois, sobre os homens e verdades, sobre as mulheres e segredos, sobre sexo. Revelavam uma pra outra coisas que papai e tio não podiam ouvir, ficavam nuas quando eles não podiam ver e dançavam, dançavam envolvidas por ventos como umas virgens de Ártemis, momentos particulares, só delas – Não pode contar! – só meninas podem ter porque mais ninguém entende o que é ficar pelado de-verdade.
“Você? Você é bonita sim, é a menina mais bonita...”, mas nada, a Lavínia é mais bonita sim! – “Nada, é que você tem esses peitos! Hahaha! O papai fala que eles são épicos. Que-isso?” Ah, era assim: tinha o lírico, o épico e o dramático. O dramático era, tipo, teatro, drama. Daí tinha tragédia e comédia, que sabia o que era. Tipo o seu tio Sieg... “É, ele é mó-drama mesmo” – ria. Então, tinha o lírico, que era uma coisa mais individualista, mais de sentimentos, que trabalha a forma, sabe, mais poesia... “Tipo o papai...” Uáu! Isso... E daí, tinha o épico, que era uma coisa bem bonita, contava a história de um povo! Muitas vezes tinha guerra no meio. O pai falava que ela tinha os seios épicos porque eram grandes, ele dizia que valiam toda uma saga heróica, xaveco! “Uhn...” – ria e se lenatava, começava a se girar em torno próprio – “E você acha que um dia eu vou ter uns peitos... épicos que nem os seus?” Livi também começava a dançar. Ah, teria sim, certamente teria peitos belíssimos.
Parava. “Mãe, me fala uma coisa, história de que povo é o seu?” Nossa, pergunta inesperada. A Lavínia tinha isso de ser surpreendente! Qual história? Tinha que pensar pra dar resposta boa agora. Ãh... Moçambique! Ela conhecia? Era a terra do vovô, ficava na África. Teve ocupação de europeus lá, e um dia se lutou por liberdade mas quando conseguiu, o país era muito dividido e teve uma guerra civil... Te dou um livro que conte melhor do que eu, amor! “Ah, África eu sei um pouco... o Tio-Zigue que me contou, ele também é de lá...” Como assim? Ele contava a vida dele pra ela? Como tinha sido isso? Ele nunca falava pra Livi e nem pro Jac... A Lavínia ria, carinha de orgulhosa por ter um segredo com ele. “Ele contou só pra mim porque eu obriguei...” – ria – “...e eu não posso contar, só se ele deixar. Mas ele é dum lugar da África, é Senegal, mas ele foi depois pra África do Sul e Moçambique também, daí ele veio pro Brasil. É isso”. Olívia não achava que era verdade, o Sea tinha milhares e milhares de mitos fundadores da própria personalidade, mas achou esse especialmente bonito e esteve feliz por saber que havia uma ótima razão pra estar junto pra sempre.
A Livi se sentiu culpada por muitos anos da vida, por não saber onde se encaixar na vida da Lavínia: o Jac, o Jac era prático, cuidava das tarefas dela, das broncas, das questões de escola e de socializar com outros pais, ajudava a estudar, impunha limites. O Siegfried foi morar com ela no reino das fantasias, sabia toda a sorte de brincadeiras e musiquinhas, conhecia os desenhos de que ela gostava, levava ao cinema e ao teatro e ao parquinho, contava histórias que inventava na hora, todas diferentes umas das outras, se pintava todo e criava personagens, mas sempre tendo o cuidado de conversar com a Livi e o Jac o que podia ou não ser dito e ser feito, mesmo depois de se terem separado. E ela-Livi? Ela não tinha o que o oferecer. Não era muito ciosa pra tomar conta ou chamar atenção, não era muito lúdica pra divertir... Achou por muito tempo que a menina era de fato filha do Sea com o Jac e ela apenas emprestou o útero, foi como sentiu, mesmo porque, quando bebê a menina não se parecia nada-nada com ela e só gostava de estar com o Jac ou o Sea. Dava medo, dava mágoa... Mas a garota foi crescendo e a partir dos nove anos, não quis mais ser o moleque que vinha sendo, sentiu necessidade de ser bonita, de ser uma mulherzinha mesmo. Sim, isso sim, era isso, eram mulheres, as duas... Lindas! Olívia então a ensinava a dançar, ensinava a se arrumar e tempos depois, sobre os homens e verdades, sobre as mulheres e segredos, sobre sexo. Revelavam uma pra outra coisas que papai e tio não podiam ouvir, ficavam nuas quando eles não podiam ver e dançavam, dançavam envolvidas por ventos como umas virgens de Ártemis, momentos particulares, só delas – Não pode contar! – só meninas podem ter porque mais ninguém entende o que é ficar pelado de-verdade.
“Você? Você é bonita sim, é a menina mais bonita...”, mas nada, a Lavínia é mais bonita sim! – “Nada, é que você tem esses peitos! Hahaha! O papai fala que eles são épicos. Que-isso?” Ah, era assim: tinha o lírico, o épico e o dramático. O dramático era, tipo, teatro, drama. Daí tinha tragédia e comédia, que sabia o que era. Tipo o seu tio Sieg... “É, ele é mó-drama mesmo” – ria. Então, tinha o lírico, que era uma coisa mais individualista, mais de sentimentos, que trabalha a forma, sabe, mais poesia... “Tipo o papai...” Uáu! Isso... E daí, tinha o épico, que era uma coisa bem bonita, contava a história de um povo! Muitas vezes tinha guerra no meio. O pai falava que ela tinha os seios épicos porque eram grandes, ele dizia que valiam toda uma saga heróica, xaveco! “Uhn...” – ria e se lenatava, começava a se girar em torno próprio – “E você acha que um dia eu vou ter uns peitos... épicos que nem os seus?” Livi também começava a dançar. Ah, teria sim, certamente teria peitos belíssimos.
Parava. “Mãe, me fala uma coisa, história de que povo é o seu?” Nossa, pergunta inesperada. A Lavínia tinha isso de ser surpreendente! Qual história? Tinha que pensar pra dar resposta boa agora. Ãh... Moçambique! Ela conhecia? Era a terra do vovô, ficava na África. Teve ocupação de europeus lá, e um dia se lutou por liberdade mas quando conseguiu, o país era muito dividido e teve uma guerra civil... Te dou um livro que conte melhor do que eu, amor! “Ah, África eu sei um pouco... o Tio-Zigue que me contou, ele também é de lá...” Como assim? Ele contava a vida dele pra ela? Como tinha sido isso? Ele nunca falava pra Livi e nem pro Jac... A Lavínia ria, carinha de orgulhosa por ter um segredo com ele. “Ele contou só pra mim porque eu obriguei...” – ria – “...e eu não posso contar, só se ele deixar. Mas ele é dum lugar da África, é Senegal, mas ele foi depois pra África do Sul e Moçambique também, daí ele veio pro Brasil. É isso”. Olívia não achava que era verdade, o Sea tinha milhares e milhares de mitos fundadores da própria personalidade, mas achou esse especialmente bonito e esteve feliz por saber que havia uma ótima razão pra estar junto pra sempre.
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