12 de dezembro de 2007

Ato 35

Ela estava dando um golinho no copo d’água quando o viu chegar e, mesmo sem fazer nada além de entrar e acenar e sentar, transtornar o ambiente completamente: francamente, a Livi não tinha o menor preparo psicológico pra rever o Sea assim, tão de-surpresa. Sentiu um tremor interno, engasgou, ficou até zonza, mas se recompôs, tinha de se recompor, porque além do Sea, tinha uma banca examinadora na frente – no lado, sendo preciso. Fechou os olhos um instante e seguiu com o que tinha de falar e falou e falou e falou, quase todo o tempo de olhos semi-cerrados, tentando a todo custo evitar se ensimesmar em pensamento sobre o ex-namorado. Mas era difícil, lembrava-se das citações que devia fazer e a voz interior que as soprava era chiada como voz do Sea. E ele estava ali, estático, de terno e óculos-escuros bem escuros, todo blindado contra o mundo. Devia a estar odiando por ter voltado ao Brasil sem avisar ninguém, por não ter respondido nenhum do diários-regulares emails que ele enviou durante o tempo em que ela esteve fora. Devia estar triste e a Livi, como grande responsável por aquilo que cativa, se sentia fragilizada e culpada. Tentava parar de pensar nele e não conseguia, o Sea não era presença que se ignorasse, nunca era! Com a sua entrada, todo o ar se tornava úmido e fresco feito maresia matinal, era até bom. O jeito que a Livi conseguiu dar na situação foi torná-lo pano de fundo de seus pensamentos e a voz do Sea se tornou pra sempre backing-vocal da tese de mestrado dela, que se lembraria disso sempre que pensasse no trabalho, todas as vezes, todinhas, até o fim da vida.

Nunca o tempo custou a passar tanto como naquela manhã. Mas acabava, finalmente! E agora podia ir de encontro ao Sea pra tirar esse peso-d’água de cima da testa – as têmporas doíam por dentro. Mas não, não meu-deus!!! Tinha que receber trocentos cumprimentos ainda e muitas recomendações e expressões de estima e parabéns e o caralho... Ah! Malditas convenções sociais! Mas tinha que segui-las, fazer-o-que?! E o Sea continuava ali, sentadinho, pernas cruzadas, mão no queixo, cara-de-conteúdo – ela sempre se agradou com as personas que ele usava nas diversas situações. Tinha se tornado um pouquinho mais corpulento e com o rosto mais envelhecido também, mas tava bonito sim, tava menos andrógeno sem as pinturas, mas não menos sedutor (até ali a Livi sempre acreditou que o charme do Sea era devido à androgenia). Era bom vê-lo de novo, puxa!, quanto tempo... Nossa, como a saudade brotava agora, minava, aguava... A Olívia passou mais de um ano sem nem sinal do rosto dele (nunca mandava fotos nos emails), acreditando que não gostava mais e foi verdade, por um tempo foi. Ela o havia jogado num pano-de-guardar-confetes, bem escondidinho no fundinho da alma, não careceu recuperar nada que viesse dele. Voltou certa de que não tornaria a ver o Sea e nem esquentou-a-cabeça com isso. Mas agora que o via, que o via com os olhos do corpo, agora sentia o pano-dos-confetes se sacudindo e mandando cores e brilhos e lança-perfume em todas as direções: carnaval do Rio de Janeiro... Mas a impassibilidade dele tava até dando medo, era claro que seria um encontro tenso, era claro que não seria festa, o que ficou bem indicado no fato de ter esperado que todos se despedissem pra só então se levantar e ir até ela:
“Congratulations! Great job! Be happy! Bye-bye!” – oferecendo a mão, bem polido, bem forçado. Mas esperasse! Tinha vindo pra fazer só isso, ponto-finalizar a apresentação dela? “E o que mais eu devo dizer dona-Olívia? Devo lamentar as saudades? Já lamentei muito!”. Podia dar um abraço pra começar, e acompanhá-la em seguida, ela iria almoçar com o orientador e os colegas, ele podia ir junto... “Olívia, eu sou anoréxico, lembra? Não posso comer... E não tem nada-a-ver eu te acompanhar. Só vim porque sabia o quanto importava pra você esse mestrado... Ele quase pos um fim na gente uma vez, né? Mas já acabou. Vai viver que eu tou vivendo também...” Quando ele disse isso, tinha na voz um supremíssimo cansaço – íssimo, Íssimo, ÍSSIMO Cansaço. Trazia o rosto mais envelhecido, mais marcado, como se tivesse vivido dez anos em um. Ir vivendo, né? Ir vivendo... Era o que a Livi estava fazendo até o Sea aparecer e, se conhecendo como se supunha conhecer, sabia que não ia mais ter paz enquanto não deixasse bem resolvida a questão com ele, não conseguiria trabalhar, nem pensar, nem dormir direito, ficaria obsessiva e talvez até doente. Pensando bem, ele não tinha nada que ter aparecido ali. Mas por outro lado, se a amava de fato como costumava afirmar nas cartas, não devia ter segurado-a-onda de saber que ela estava no Brasil. Então, a culpa de ele estar ali era exclusivamente da Livi, porque ele não teria ido se ela lhe tivesse comunicado a chegada... Ah!, meu-deus! Francamente!, só-ela mesmo! Mas também, como ela poderia adivinhar que ele descobriria o dia e a hora e o local da argüição? Não poderia... A propósito, como ele tinha conseguido chegar até ali? “Já inventaram o Google, sabia? Eu lanço seu nome pelo menos uma vez por semana pra saber o que você anda fazendo da sua vida, já que você não fala... Mas te juro que não faço isso nunca mais. I’ll leave you alone, Liv... finally...” Nossa, que coisa!, que coisa ruim que deu no peito. De-repente a Livi ficou com um medo danado de perder o Sea, de perder definitivamente. Não, não fizesse assim! Ainda tinha o mesmo endereço, os mesmos telefones? Por-favor, dissesse que ela precisava revê-lo, dizer qualquer-coisa urgentemente. “No, nevermind!, Liv, já deu. Eu tou muito desmoralizado, tou com a alto-estima baixa com tudo isso, não tem nada pra esclarecer, eu já sei o que aconteceu: você deixou de me amar. Pronto”. Não tinha, o pior era que ela não tinha deixado de amar não, tinha só guardado o amor no freezer ou alterado sua natureza, não era o amor de antes mas era algum amor. Mas não diria isso, melhor-não, apenas insistiria num outro encontro, diria que sentia saudade... “Saudade... Tá... Quer me encontrar... Nem-fodendo, minha filha”. Mas por que a teimosia? Se tava ali era que queria vê-la, não era? “Não sei... Não tenho essa volúpia auto-analítica toda pra saber se é isso mesmo, nem sei bem porque eu vim...” Ah!, bobagem!, parasse com o nem-fodendo e dissesse quando tinha um tempo livre e onde podiam se ver, ela poderia ir até a casa dele... “Quer que eu pare com nem-fodendo? Então tá, só-fodendo! E como eu não tou mais alugando o ape do Bixiga, se ce quiser falar comigo, vai ser sem roupa, em cima duma cama de motel. E aí, vai me dar?”
Foi tão à-queima-roupa que a Livi nem sabia o que dizer, riu um pouco sem-graça, esquivou os olhos coçou a cabeça... Ele nunca tinha falado com ela naqueles termos, pelo menos nunca a sério. Dar pra ele? Tipo, ele tava brincando, né? “Não”. Não, ele não tava brincando. Olhou pra o rosto dele e não dava pra saber direito o que se passava por causa dos óculos que voltaram a lhe esconder os olhos. Nossa, o Sea devia mesmo estar muito magoado, devia ter dito aquilo pra desestabilizar o estado emocional dela. Respondesse, queria mesmo que ela desse por que? “Ah, Olívia! Why does a guy wanna fuck a girl? Tell me...” Schsssssssss! Falasse baixo! Podiam ouvir e todo mundo ali manjava inglês perfeitamente! E não viesse com essa conversa porque não colava... E tirasse os óculos pra falar com ela. “Olha!, quanta exigência... Viver com los hermanos argentinos te endureceu? É bom, né!” – tirou os óculos, tinha os olhos fechados e os foi verdíssimamente abrindo, suspirou fundo, parecia extenuado – “Olha, eu nem sei porque te disse isso, foi espontâneo, foi sem pensar... Mas no final, embora seja gay eu não sou menina, eu sou homem, então acho que não tem essa de conversa, acho que eu só consigo te ver de-boa se recuperar a auto-estima e acho que sexo com você me ajudaria muito nisso. É, eu acho isso. Então... então nem me procura se não for pra me dar, depois a gente pode até conversar”. Eta! Mas e o maridão dele? Não ficaria puto? “Não tenho marido, eu namoro. E não vou mais conversar, Liv. Eu tou indo! Não tenho mais telefone fixo, se quiser me liga no celular, mas só se for pra gente marcar de transar, tá? Take care of you. Bye!”.

E foi. E deixou a imaginação erótica da Livi muito efervecente, lembrando com certa pontinha de delícia das noites e noites que gastavam acordados, se acarinhando... acarinhando... acarinhando... Carinhos de fazer o corpo da gente desmanchar! Vix, ia ter que ligar... Queria ligar... Ainda dava pra ver o vulto dele pela janela quando ela ligou: “Oi, Siegfried. Então, tá livre quando? Pode ser hoje?... Legal. Mas pode ser... só por hoje?”.

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