Tava reclinado nos puffs da casa do Sea... Não, pera-í, reclinado não, jogado... E também casa não, cafofo!, um apartamentinho térreo num predinho horroroso, tudo pequeno, mal iluminado e muito úmido, todas as paredes cheias de coisas, um mau-gosto! Não se lembrava daquele lugar assim, a única vez que esteve ali já tinha anoitecido, tava tudo escuro e as lâmpadas não ajudavam em quase nada, não dava pra ver nada e nem quis, a presença o Sea foi um imperativo muito agradável.
Mas agora estava ali de novo (exercitando ironias contra si mesmo), desmanchado na sala dele, destrinchando maconha pra relaxar depois do trabalho e vendo o Sea fazer alguma arte esquisita. Era um quadro de textura, parecia a figura de uma pessoa mas não dava pra saber quem era. Tocava um CD de música viciosa e sombria, que fazia o peito se incomodar um pouco, uma letra bem mais baixa que os outros instrumentos que recitava desgraças e medos e outras coisas terríveis. O que era aquilo? “São as sujas lições do coração... Jake”. Certo, lições... E dava pra parar a aula agora? Ah, sim? Então por-favor... “Ce tá incomodado, Jake?”
Não responderia mas estava sim. Teve no meio da tarde uns gritos eletrizantes cortando as veias e o coração bombou fervente quando se lembrou do Sea e chegou à conclusão de que devia ligar, principalmente depois que o Cláudio perguntou a razão de estar tão tenso, até vermelho: “Tá nervosinho, João! Será que ce tá na seca?” Pois-é, tava sim, já tinha quinze dias que não beijava ninguém... “E você não tá afim de dar uma esticadinha depois daqui?” Ah!, queria, mas não com o Cláudio, que o Jac não tinha vocação pra amante de ninguém, ou era titular em linha de frente ou não era nada. Sacou o celular na hora e metralhou o Cláudio com uma ligação bem melada pro Sea e foi bom assim, ele era muito facinho, nem pensou pra dizer sim.
Mas agora já estava quase se arrependendo porque preferia ter marcado encontro em algum território neutro. Ali, no país-das-maravilhas, tava correndo um risco imenso: o de se irritar com o tanto ignorante de estímulos que a casinha proporcionava, nossa!, não dava pra descansar ali dentro, como foi que a Livi agüentou passar seis meses naquele lugar? E se ficasse com os nervos estourando, acabaria sendo grosseiro com o Sea e teria o alvará one-night-stand cassado. Uhn... Un-hun! Era melhor caprichar o tamanho do baseado! É assim... E um bom trago!... Ah, mas agora que a música não tocava mais e que milagrosamente o Sea tava silencioso, o fazia falta sons de vozes pra preencher alguma coisa por dentro. Tinha que puxar algum assunto, mas o que? O que, cacete!? Nem tinha muito o que falar com o Sea na verdade. Bom, podia falar do que mais chamava a atenção nele, o sotaque. Vinha de onde aquele sotaque?
“De muitos lugares... Eu assimilo o jeito de falar de todo mundo que vive comigo” – não tirava os olhos do quadro, que pintava usando as mãos apenas; de pé, com postura reta, descalço, sem camisa; o quadro apoiado em duas araras sem roupas no meio da sala; o tapete enrolado de lado. Mas então, qual era língua nativa dele? “Não, nenhuma. Eu não sei falar a língua do lugar onde eu nasci”. E onde tinha nascido? “Na lua”. Não devia falar séria mas também não parecia que brincava. Na lua? Na lua mesmo? “Yeah, I was born in the dark side of the moon”. Certo, e tinha vindo parar na terra como? “Você não tá querendo saber disso, Jake, não precisa ser simpático, eu vou entender se você só estiver me agüentando pra poder me...” Não, nem continuasse. Se tinha ligado era porque queria vê-lo, então parasse com aquilo. Não gostava de falar da infância? “Gosto, claro que gosto. Eu nasci na lua, uma pinup espacial me trouxe no vão dos peitos, morei com ela num bordel da Tailândia e fui abusado sexualmente dos três até os cinco anos, mas até que foi bom, gostei. Depois eu cansei e larguei dela, fui até a Rússia mas parece que o comunismo tava causando muito por lá, daí eu fui pra Alemanha...” Tá-tá-tá-tá-tá! Já tinha dado! Já imaginava o final da historinha fantástica. O que não dava pra imaginar era essa postura que ele tava assumindo, mas que coisa mais foda!, por que não concedia a gentileza de uma conversa civilizada? Mas não, não dava pra perguntar isso ainda, não era o caso de por a perder mais que a paciência. Então respirava fundo, mas o ar faltava, sufocava o cheiro de tintas e tiner. Sofocava e fazia os olhos arderem. A sensibilidade aguçada pelo fumo fazia com que tudo parecesse mais agressivo e o Sea não colaborava, não parava de alisar a porra-do-quadro, não demonstrava o menor interesse, não parecia querer que o Jac estivesse ali a despeito do aparente ânimo no telefone. Estaria querendo o que? Respondesse por favor! “Queria te ver, tá duvidando por que? Tá carente?”. Esse era o tipo de frasezinha que fazia com que a saliva do Jac ficasse sólida e descesse pela traquéia enfiando agulhas por todos os lados. Carente? Carente? Não, tava só ficando enjoado do cheiro das tintas, devia ser isso, claro, só podia ser. “Ah, então tá bom. Dá mais um tempinho aí que a gente sai. Pode ser? É que eu tou precisando terminar isso aqui. Não quer brincar com os gatos? A Bues gostou de você...” Ah, mas era claro que havia gostado! Era só o que faltava, uma gata filha-da-puta pra se esfregar e encher de pelos o terno! Era só o que faltava! O Sea tinha mesmo um jeito bem particular de representar animosidades. O curioso era que havia nem vinte dias que ele tinha vindo com um papinho, chamando o Jac de artificioso, com banca de quem não gosta de joguinho... Não, não valia a pena se gastar falando disso.
Bom, mas e a porra-do-quadro? Tinha prazo de entrega? “Não, não tem. Eu é que quero terminar mesmo, já trabalhei demais nisso... I’m gettin’ tired...” Ah, sim... E de que se tratava, se pudesse saber? “Pode sim, é a Liv”. Livi, Li-vi... O nome dela ainda dava um repuxo na alma mas era no corpo que cobrava o preço da ausência, era na insônia, era na azia (e ainda deixava o Sea como espólio de guerra). O nome da Livi... Ele fez despertar o interesse do Jac pelo trabalho do Sea. Ia ver: uma forma de corpo feminino, toda azul e dourada, os braços e pernas nascendo da pedra, várias veias e nervos evidentes de esforço, parecia que tentava se arrancar da pedra... O corpo arqueado pra cima dava muita idéia de movimento, um movimento tenso de se ver, coisa sofrida, coisa de cabeça doente, coisa do Sea, né, queria-o-que! O que na Livi se parecia com aquilo? “Ué?, como assim? A Liv! Forte, saindo da terra... Dourada, bem dourada...” Era assim que ele via a Olívia? Forte e reluzindo a ouro? Pro Jac ela era só evasiva mesmo... E preta! Nada de dourada não! “É que você nunca olhou pra ela com cuidado. Ela tem brilho...” Olhasse, com o azul o Jac concordava porque a Livi era assim mesmo, black and blue, meio Loui Armstrong, meio triste... Mas dourado nem fodendo! E nunca que toda aquela força representava ela, o talento dela era fugir e não se libertar. “Nossa, mas que visão que você tem dela! Que coisa mais magoada... Fugir e se libertar é a mesma coisa, é o mesmo desejo...” Não era a mesma coisa poruqe não implicavam na mesma atitude, a questão era a atitude e não o sentimento. “Ih... Se você faz mais questão de atitude que de sentimento então não tem nem como a gente continuar essa conversa... Porque eu nunca vi nada na Liv que não fosse puro sentimento” Essa era outra coisa, o Jac nem achava que a Livi era apática mesmo, não tinha muito sentimento pelas pessoas, achava que ela lia demais e ouvia música demais e via filmes e peças demais era pra conseguir sentir alguma coisa, porque ela não tinha sentimento espontâneo, não tinha, tudo era tédio e mágoa e tédio de novo. Era até um charme nela, a gente acabava seduzido pelo olhar cinzento dela... “Ela tem olhos azuis...” Hahahaha! Agora o Jac tinha entendido a relação do Sea com a Livi: ele nunca tinha estado com ela de-verdade! Era claro que a Livi tinha olhos cinza, cinza mesmo, cor de nuvem quando chove, olhos muito grandes e cinzas, era o que mais chamava atenção na cara dela. “É o teu mundo que é cinza... Jake... Deve ser de tanto que ce trabalha...” Ah, bom! Alguém precisava trabalhar naquele mundo, né!? Mas não, não ia falar, ia deixá-lo curtir o prazer fake de ter fechado bestamente uma argumentação. Não queria se lembrar da Livi... Mas agora já se tinha lembrado e uma imagem dela evocava outra até parar nos comentários que ela fazia sobre o Sea, que não era simples lidar com ele, que tinha o humor flutuante, que era uma figura meio picaresca, mas que era fácil a gente gostar dele. Picaresco ele era, flutuante também, mas fácil gostar dele, por que? Pessoinha pedante, arrogante... E nem era tão bonito assim, precisava se limpar bem da maquiagem pra ter um rosto palatável, mas ele sempre andava maquiado, uma pintura preta em redor dos olhos e alguma outra coisa que tirava a cor da boca, parecia morto-vivo, ainda mais com umas nojentas lentes brancas que insistia em usar. Olhava pra ele agora, enquanto prendia a respiração pra não tossir a fumaça do baseado. Uma gata preta de olhos muito claros se raspava pelas pernas do terno risca-de-giz do Jac e quando parecia que se afastava, olhava pra trás, tornava a se enroscar, as patinhas delicadas pisavam o sapato. Olhava fixamente o Jac agora. Pelo menos os pelos que soltava eram escuros e não apareceriam muito. Hey, gatinho! Gatinho bonitinho. Gostava do Jac, era? “Então, é a Blues... Você deve ter sorte, ela não gosta de ninguém. Até de mim ela vive fugindo”. A simpatia do Jac pela gata aumentou por isso, aumentou bastante. Era bonitinha sim, pequena, meneava a cabecinha tão delicada, ronronava baixinho, olhava esperando carinho mas não pulava no colo pra se impor, ficava sempre esperando o Jac tomar a iniciativa. O Jac nunca gostou muito de gatos, achava uns bichos traiçoeiros que não-tão-nem-aí pros donos e só aceitam carinho quando querem, voluntariosos demais pra bichos de estimação. Mas aquela não, aquela, quando Jac deu sinal de querer acarinhar, ela deixou... Deixou sim, que bonitinha, parecia uma coelhinha mexendo o focinho... Fofa! O Sea tinha quantos gatos naquele apezinho? “Os gatos não são meus, eu é que sou o humano deles... E são três, duas fêmeas e um macho, pra eles poderem fazer ménage quando quiserem... Mas eles são livres, não ficam aqui o dia todo, saem e vêm quando tão-afim”. Mas não pegavam doença saindo? E a despesa com veterinário? “É o preço que a gente paga por amar a liberdade”. O Sea estava se afastando pra contemplar o quadro agora, parecia ter aprontado tudo. Tinha o rosto menos tenso agora, até com um sorrisinho bem pequeno de satisfação. Lambia os lábios, apoiava as mãos nos joelhos pra mudar o ponto de vista, apertava os olhos pra ver melhor qualquer detalhe, voltava a se aprumar. Isso era bonito: o modo com que se movia, sempre devagar e malemolente, sempre calculado, sempre sensual. Era isso o que fazia daquela criatura incômoda uma pessoa tão atraente, o jeito de se mover: o Sea não tinha graça se estava inerte, mas ele quase nunca estava. O Jac poderia perder horas olhando pro Sea e o curioso era que só pensava nisso quando o via, porque se estavam separados só sabia se perguntar porque diabos ainda tinha o celular dele salvo na memória do Palm, pensava em apagar e deixava pra depois. Mas agora estavam juntos e agora o Sea andava pra lá e pra cá e quebrava as munhecas discretamente enquanto andava e deitava a cabeça pra cá ou pra lá e olhava de viés e rodava o pé esquerdo enquanto estava parado... Era branquinho... Usava jeans apertadinhos... Os cabelos muito pretos caíam na frente dos olhos... Bom de ver! E devia gostar de ser visto porque se alinhou mais quando percebeu que o Jac não parava de se admirar com ele. Se alinhou e abriu os lábios devagarinho... “O que é a liberdade pra você, Jake?” Ahhhh!!! Maldita pergunta inoportuna, porque não perguntou qualquer coisa de sexo?! Não, mas tudo bem! Tudo bem, responder o que? Alguma cantada pra quebrar-o-gelo: “Liberdade agora é poder te beijar porque eu tou com vontade” – e chegava perto, mas sem encostar porque o Sea tinha tinta nos braços e nas mãos e no peito e tudo mais, o que era um empecilho chato ao beijo não realizado que guardava nos lábios. E o Sea se ria: “É... Pode ser... Mas nesse contexto eu acho que você seria mais livre sem o peso de um Armani nas costas, né?” Ria. Ria... Certo, era uma observação espirituosa. Mas que se-fodesse com o papinho de liberdade: “O terno não tá me agrilhoando... É só tirar... Quer que eu tire? Posso tirar, a gente fica sem roupa. O problema é que eu tou pirando com esse cheiro de tinta, queria te levar daqui... Ce não quer tomar um banho?”.
Mas nada, o Sea ria... ria... ria... Por que tinha sempre que ser tão cáustico, tão pouco agradável? Mas que-saco!, por que não simplificar as coisas? Uma pena, porque coisas assim faziam com que a previsão de segurança da alma indicasse que as areias do tempo deles teriam pra cair um período de motel, nunca uma noite toda, nunca um sono de paz.
12 de dezembro de 2007
Ato 30
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