12 de dezembro de 2007

Ato 36

O João Carlos está em silêncio que precede terremoto, empedrecendo, gravemente empedrecendo, os olhos vermelhos e secos atrás dos óculos, deve até doer pra piscar, o corpo rijo, a alma em riste.

O Siegfried, derretendo, se liquefazendo, perdendo toda-toda consistência corpórea e até querendo virar água pra poder correr-fora pela fresta da porta ou pra evaporar mesmo, sumir pra-sempre, pra o sempre mais comprido que imaginar (porque pra-sempre com o Sea nunca dura muito). Todo derrubado no sofá, melindrado, abobado, com cara-de-idiota, sem energia nem pra roer unha – coisa que tava dando uma vontade danada!

A Olívia tá de pé, próxima à janela pra tomar uma brisa, olhando pra fora muito longamente, divisando o horizonte, inspirando as pressões da vida e expirando a essência do tédio.

Todos na mesma sala branca-e-prata de decoração clean pra-caralho da casa do João, que antigamente era da Olívia também. A última vez em que se encontraram assim, os três juntos, foi confuso, muito confuso e muito apaixonado, uma viagem bem onírica, uma putaria bem sagrada. Foi quando o João se certificou do retorno da Olívia. Ele foi pra casa do Siegfried próxima à represa e encontrou a Olívia dormindo no sofá, o corpo mal coberto só por uma cabeleira imitada das belas cubanas, muito mais linda que os cachos rebeldes com que a conheceu. Estava mais magra também, demorou a reconhecê-la. Pensou em se zangar por ciúmes, mas seria bem artificial porque não tava sentindo ciúme nenhum, nem do namorado e nem dela. Então pensou só que o Sieg devia chegar à meia-noite, o que lhe dava pelo menos uma hora sozinho com ela e não teve dúvida, foi acordá-la com carícias íntimas caçadoras das umidades, porque ficou taradíssimo a vendo ali. E ela estranhou mas cedeu, cedeu facinha-facinha toda cheia de saudades. Eles não viram o Sieg chegar, quando se deram conta ele já estava dado e puto abraçado à Olívia e beijando o João.

Um amor feito pra dar errado: o resultado disso foi devastador pra todo mundo. O João dispensou o Siegfried, não por estar mantendo caso com a Olívia, mas por não ter dito que ela havia voltado – guardar a mulher só pra ele foi a gota de merda que faltava pra fazer explodir a fossa cheia daquele namoro doentio. A Olívia não quis mais ver o Sieg porque achou muito trapaceiro da parte dele nunca ter dito que o namorado que tinha era o João, ela nunca teria traído o João dessa maneira. O João também se afastou da Olívia, achou que era o cúmulo da fraqueza de espírito ela não ter tido coragem de reencontrá-lo, depois de tudo o que fez por ela mesmo ela estando em Buenos Aires; a Olívia, ela deixou assim, não quis devassar a vida dele mais do que achava que já tinha feito. Pro Siegfried não restava nada além de se justificar, mas ele não se dignou a isso, não achou que houvesse justificativa possível porque não se considerava tendo feito canalhice nenhuma: teriam se encontrado se realmente quisessem e se a Liv não se-ligou que o namorado era o Jake, foi por ser excessivamente distraída. Ligou pro Marcos com o peito arrasado, soube que ele estava se divorciando, desceu a serra de Santos na mesma hora, se enfiou no apartamento dele e só teve permissão pra por-a-cara-na-rua passados três dias.

E hoje, hoje se encontraram, os três, a pedido dela. Foi na casa do João porque todo mundo ainda tinha as chaves. Ninguém tinha bom-ânimo, mas a coisa piorou quando ela disse a necessidade do encontro: sem aviso-prévio (como diria o João), sem vaselina (como diria o Siegfried), à-queima-roupa (como digo eu), ela foi falando bem assim, “tou grávida mas não vou ter esse filho”.
Agora eles estão justamente sob o efeito dessa declaração, estão em silêncio, mas o Jac o quebra com uma perguntinha técnica sobre o tempo da gravidez. “Cinco semanas... É, é bem isso que ce tá pensando sim, foi naquela noite... E é por isso que eu chamei vocês dois, achei sacanagem vocês... sei lá... não saberem”.

Os dois homens suspiraram em uníssono de alma, mas com resoluções muito distintas. O Siegfried se anoitecia nos olhos porque queria muito um filhinho, já tava ficando meio velho pra ser tão sozinho quanto era e filho é sempre o tipo de gente que não larga da gente nunca mais, né? Poderia tomar os remédios bem direitinho, fazer menos balada, criar a criança em Guarapiranga ou no Rio, sabe lá, ser bom-pai mesmo, casar... Ia ser bom, maravilhoso talvez, mas se ela quer tirar, ele tem obrigação de entender, aceitar, apoiar. Então se levantou e foi até ela e segurou firme na mão.

O João sempre quis ter filhos, desde moleque quis uma família sua, não teve até então por achar que não tinha tempo o bastante pra dar atenções, sempre trabalhando tanto, queria que a vida se acalmasse um pouco pra ter, mas enfim... Acreditava que as coisas acontecem quando têm que acontecer e se ela tá grávida, tem obrigação de parir e vai! Fez então um grande esforço, um imenso esforço, um esforço filho-da-puta na verdade, só pra conseguir destravar o queixo duro de tensão. Mas conseguindo, deu vazão à verborréia: a Livi então quer abortar, não é? E precisa de um bom médico pra não perder a vida com a brincadeira... Certo? E médicos bons cobram muito-muito caro pra realizar procedimentos ilegais, né? E dos três, o único que poderia bancar um aborto é ele-Jac mesmo, ou tá enganado? Não, não tá, pois-é! Então ele tem o gosto de informar, pela primeira vez em todos aqueles anos, que no que dependesse dele-Jac, ela-Livi tava na-merda! Porque nem-fodendo que bancaria a morte do próprio filho...

A intransigência da declaração pegou a Livi de-surpresa e a Livi não consegue passar-bem quando pêga de-surpresa. Mas que absurdo era aquele? Era a vida dela, era o corpo dela, não era justo mudar a vida inteira por causa de uma maldita-pílula que falhou.

O Siegfried ainda a segurava pela mão e disse, bem pelo vão dos dentes, bem tremendo de angústia, que não precisava ser assim, que ainda podia contar com ele. Podiam ir até o Rio e falar com a Aimée, a mãe-postiça dele. Ela certamente emprestaria uma grana, ainda mais se fosse pra isso.

_Siegfried, você é um filho-da-puta-imoral! – o Sieg tremeu novamente com o efeito do grito do Jac – Você tá proibido de ajudar a Olívia com isso. E quanto a você, mocinha, é o seguinte: nem se atreva a tentar porque senão, ce vai se recuperar da operação na cadeia. Eu juro que te meto na cadeia, nem que eu leve a vida toda pra isso. Você não vai, não vai matar o meu filho! – e eis que volta ao peito do Jac uma cãibra forte; faz tempo que ele não a sente, mas agora ela volta e muito mais forte que das outras vezes, precisava ir ao médico ver isso uma-hora-dessas...

A Livi não acredita que o Jac realmente tenha capacidade de prendê-la, estava certa de que se tratava de um blefe. Ia prendê-la pelo crime de proteger a própria vida e de privar uma criança do peso de ter nascido sem ser desejada, sem saber direito quem é o pai. Era isso: o Jac pode ficar quietinho na-dele porque não tem a menor prova de que o filho seja dele, tem cinqüenta por cento de chance de ser do...“Olha, Olívia, raciocina! Esse filho é meu, seja como for. Porque se algum dia você conheceu o Sieg foi porque eu dei o ensejo. E se vocês tiveram um caso durante o nosso casamento foi porque eu permiti. Então se não fosse por mim, essa criança não teria sido concebida, o que me garante plenos direitos à paternidade, independentemente da porra que te fecundou ser minha ou não. Simples assim! Esse bebê não vai ser filho desse irresponsável e nem vai ser morto por você, tá legal?!” – gritava, se impunha, estava muito vermelho.

O Siegfried ficou assustado no início, mas agora estava achando interessante ver como o João lida com coisas que não pode comprar ou vender. Ele quer resolver na base da argumentação mas nem se liga de que a vida não é um jogo de argumentos. Mas o Sea está tão desgastado fisicamente que não consegue dizer nada a não ser um tímido “você é o cara mais egoísta que eu já vi, ela tem o direito de...”.

_Egoísta? Escuta, quem tá querendo acabar com uma vida por egoísmo são vocês! E se ela tivesse direito, ele estaria garantido por lei, se não tá na lei, acabou! Vocês tão me dando nojo! Vocês se merecem mas são tão incompetentes que não conseguem nem ficar bem juntos... – tinha mais pra dizer, mas a cãibra cardíaca já estava se tornando forte demais pra autorizar fala. Sentiu tudo muito seco ao redor, sentiu faltar ar, sentiu os olhos minarem mas não quer chorar, não quer! Mas não deu pra segurar, caiu de joelho agarrado ao próprio peito o rosto baixo pra não entregar as lágrima e dizendo baixinho “Covardes... odeio... odeio... odeio...”
A Olívia abraçou o Siegfried, precisava de qualquer sinal de apoio, qualquer sinal. De alguma forma estranha ela amava o Jac e não queria que ele a odiasse, esperava mais compreensão – que idiota ela é! Treme, treme todinha e só não chora porque não consegue chorar acordada. É claro que ela não quer matar ninguém! Mas muito mais claro é que faria no mínimo duas pessoas sumamente infelizes sendo mãe, ela-mesma e o próprio filho.

O Sieg dá uma força porque não imagina nada mais solitário que estar grávida sem homem e sem saber o que fazer. Está abraçadinho por trás e canta no ouvido, bem baixinho pra o outro não ouvir “all the knives seem to lacerate your brain, I've had my share, I'll help you with the pain, you're not alone…”

E o João permanece no chão, se encolhendo cada vez mais, diminuindo, diminuindo... Até se reduzir a quase-pó, tomba de lado encolhidinho e a respiração ofegante se apaga... Ele tenta-forte puxar ar pra dentro dos pulmões, mas não tem força o bastante e o coração não ajuda, não pára de doer... Não tem ar mais nem pra pedir socorro... Nunca se sentiu mais impotente, não consegue dar conta nem do próprio corpo... O João está morrendo... Está morrendo sim, deve ser isso... A Livi deve ter falado alguma coisa, é a voz dela, mas não dá pra entender, os sons tão muito abafados... É estranho, quase agradável, tá flutuando agora... Tá... Nossa, e o bebê? Vai morrer também... Ah... Melhor fechar os olhos e morrer com calma agora... Ah...

Mas nada! Abriu os olhos de novo! Não está morto, não parece estar pelo menos. Não... Só não está em casa, onde está, o que é isso? “Acordou, amor?” Ah, é a Livi! “Sou eu... E o Sea tá lá fora, foi descansar um pouco, a gente tá cuidando de você... Você quase morreu, amor, e quase matou a gente também”. Mas o que-que aconteceu? “Você teve uma parada cardio-respiratória”. Silenciou um tempo... Nossa!... Nossa! Há quanto tempo está no hospital? “Uns dias, amor, mas não fala, descansa”. Tem sede, muita sede! E precisa de vento também que tá cozinhando... Mas e o bebê? Precisa saber do bebê, ela já abortou? “Não, amor. Não vou mais tirar... Eu tou pensando em voltar pra sua casa... se você ainda me quiser por lá...” A casa é dela, sempre foi.

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