12 de dezembro de 2007

Ato 26

de: Ziggyfree [ziggyfree@corpus.com.br]

para: Olívia Celeste [leavealone@gmail.com]

data: Hoje (6 horas atrás)

assunto: It hit me everyday



Hi, my urchin one!

O dia foi sombrio, 7 graus em SP, chuva. Deve estar muito frio em Bs As, imagino vc sofrendo com a sua pele seca. Será que neva por aí? A última vez em que eu vi neve ainda era criança, o que é bom porque não gosto de neve. Na noite passada eu terminei de ler o livro de poemas do escritor africano que você me deu, o Karingana. Hoje eu pintei com spray um dos poemas no teto do meu quarto, chama-se Civilização, você se lembra dele? Descupe pela pergunta retórica. A propósito, lamento pelo último poema que eu enviei, ele é realmente muito feio. Mas a respeito de coisas feias eu poderia escrever tanto que o poema seria no final a mais bela – é tudo tão relativo, não? Essa semana eu vi uma pessoa se ajoelhar no chão do banco e chorar, chorar desesperadamente. Fui ajudar o homem, mas não me senti autorizado a perguntar o que tinha acontecido (estou tentando ser menos invasivo ultimamente). A verdade é que eu não precisei perguntar porque ele começou a falar, falar e falar quando eu o abracei. Aconteceu de ele ter um tipo de invalidez por conta de problemas emocionais (no mesmo ano ele perdeu os dois filhos num acidente e a esposa pro câncer). Ele ficou com uns lapsos muito sérios de memória recente e não consegue mais trabalhar (mesmo tendo idade pra se aposentar ele trabalha). Mas a seguradora da previdência negou o pedido de aposentadoria. E como ele é autônomo, não tem mais de onde tirar grana. Tecnicamente a vida dele acabou. Como alguém pode fazer isso? São pessoas, não é? Now I'm hoping someone will care... Mas nada! Eu acho que é por isso que eu me sinto cada vez mais fino, mais gasto, como se fosse um pedaço de carne batido demais. É tudo tão bem feito, tão bem articulado, quem já está vencendo vai vencer pra sempre e os perdedores somos nós, desde antes de nascermos. É um esquema que fica 24 horas calculando a maneira mais barata e eficaz de reduzir gente a sifra, eles são brilhantes, onipotentes, onipresentes. Em qualquer lugar de alto nível – e mesmo de médio – que você vá em SP o atendimento é o pior possível sempre, porque se contrata mão de obra desqualificada e em vez de qualificarem, pagam o menor salário do mundo. O empregado (ou colaborador, em bom tucanês) fica insatisfeito (ou desmotivado, em bom tucanês) e não atende ninguém direito. Eu tenho até vergonha de ir ao cinema no domingo pra me divertir, enquanto essa gente, que muitas vezes é religiosa e devia guardar o domingo, precisa trabalhar e sem ganhar adicional, porque os desgraçados pagam a mesma coisa seja domingo ou 2ª. É por causa desse tipo de coisa que todos os serviços prestados depois do ano 2000 trabalham incessantemente pra pior atender-nos. O telemarketing é o caso mais clássico. E fica cada vez mais difícil de se poder reclamar. Eu nunca sei se me sinto pior ao ser mal atendido ou ao reclamar do coitado pra um superior que vai ameaçar demitir e colocar no lugar dele alguém tão ruim quanto. É claro que eu quero passar bem, mas mais claro ainda é que a pouca moralidade que eu tenho passa justamente na questão de não ser um escroto com quem está pior que eu. Mesmo porque, se você for ver bem, eu estou na mesma posição que eles em termos de luta de classe, estou sendo explorado também, seria até falta de empatia. A gente precisa dos bons burgueses pra proteger a gente, que grande palhaçada. Por falar nisso, aconteceu uma coisa muito singular e eu não sei o que pensar dela. Te falei que não posso mais dar minhas aulas de inglês na quadra da comunidade pra molecada porque dois casais da igreja me chamaram de tarado, achando que podia abusar dos filhos deles, você lembra? Tudo foi porque me viram andando de mão dada com o meu namorado. Pois é, o caso é que esse meu namorado é ótimo em captar dinheiro, ainda mais se for por boas causas que vão ficar escritas num cartaz na empresa dele (responsabilidade social é como ele chama). Sabendo dessa história que aconteceu, ele simplesmente comprou quem tinha que ser comprado e resolveu a questão: inflou de grana a associação, disse que queria que todo mundo organizasse todos os cursos e que todas as aulas fossem dadas em salas fechadas e não na quadra, porque uma parte da grana era pra alugar um lugar. E a condição pra ele liberar a verba era que eu voltasse a dar aula. O pessoal aceitou, embora eu já não tenha a mesma turminha de antes, posso ajudar outra vez, que é o trabalho que eu mais gosto. Foi uma das coisas mais gentis que alguém já fez por mim, mas eu não sei se gosto desse tipo de gentileza. O cara teve que comprar todo mundo e falou, sem o menor pudor, que se ele estava pagando, tudo tinha que sair do jeito dele e fim de papo. Eu não quis aceitar a princípio e não aceito bem até agora, me dá dor de cabeça cada vez que alguém me olha com cara esquisita. E me dá vontade de me matar quando algum ex-aluninho me pergunta porque eu não dou mais aula pra eles, não tenho coragem de dizer que os pais deles me acham um monstro e que eu calei a boca deles com dinheiro. Nessas horas eu respondo só que não sou bom o bastante pra eles e fico no maior apuro porque eles dizem que não tem nada a ver e me abraçam – eu criei pânico de ser abraçado por menininhos. É aqui que a gente vive, no mundo em que tudo se resolve com dinheiro. E não interessa mais quem a gente é, contanto que a gente pareça ser ok segundo o ethos neo-liberal (se bem que tendo grana até isso dá pra conseguir). Neném, eu odeio, odeio mais que tudo essa ditadura do politicamente correto, odeio. Lembrei do filme que eu te dei, o 1984, e queria que você fosse a minha Júlia agora, minha Júlia, tirando a roupa devagarinho pra mim, se tocando, com carinha de tesão. Você toda linda de langerie deitada no sofá, fazendo cena, como eu te queria agora, toda puta, sem a menor vergonha, você andando bem pelada pela rua e vindo me abraçar, você no meio de uma suruba, caindo de rir, você e um monte de sacanagem bem suja, e eu te vendo e me sentindo um ser humano outra vez. Você me faz viver. Quanto ao meu namorado, estamos apaixonados e eu me odeio por isso e odeio ele também, ele se orgulha de tudo o que eu mais odeio na existência, mas também é a coisa que eu mais quero ter na mão, é pior que vício em craque, eu preciso ficar com ele como quem precisa de mais uma dose, mas cada vez que a gente fica ele me mata um pouquinho. Não que ele seja um canalha, acho que não é isso, mas é misturar base com ácido, a gente se anula quando está junto. Mudando de assunto, precisei castrar a Rock, ela começou a entrar em cios consecutivos e eu não conseguia mais dormir, quando fui descobrir, ela tinha infecção de útero. Estou chateadíssimo, ela é estéril agora e eu sinto falta do miado dela. O Jazz está super estranho com ela, não sei o que acontece, mas ele está bem. A Blues é que não tem jeito, sente sua falta demais, fica melancólica, parada, olhando pro nada o dia todo. Quando eu chego, ela deita no meu colo e acha ruim se eu tento tirar, está muito injuriada. Eles estão te mandando beijinho de gato agora, rs. E eu, tudo o que eu vivo é o desejo de te ver mais uma vez, no mais, só poeira da terra, só água do céu, sinto até falta de ar de vez em quando. I’ll always be there for you.

S.

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