12 de dezembro de 2007

Ato 29

Está a Livi escolhendo no armário uma roupa pra sair, coisa sempre demorada de se fazer. Era que ela sempre tinha sido uma mocinha vaidosa, gostando de ser bem cuidadinha e sempre se esmerando em tratar a pele, o corpo e principalmente o cabelo, pra que sempre ficasse rebelde e esvoaçante, os cachinhos pretos e platinados apontando pra muitos lados e desnudando o pescoço. Ela nunca achou que a beleza era exclusivamente instrumento da atração sexual, pelo contrário, gostava de ser bonita só por prazer estético. Achava incômodo sair com vestidos leves e justinhos porque sempre ouvia comentários bem nojentos sobre seu andar ou seus peitos ou sua bunda, mas mais incômodo que isso era se privar da beleza do próprio corpo dentro dos modelinhos de sua preferência por causa de homem estúpido que não contém os próprios instintos.

Mas a coisa da beleza se tornou muito mais especial durante o tempo em que viveu com o Sea. Era que ele não era uma pessoa como as outras, com uma vida particular, não. Ele era uma obra de arte em ato e movimento, tudo com ele tinha um Q de fantástico e maravilhoso, tudo com sentidos múltiplos... Era personagem de si mesmo o tempo-todo, era perfomático o tempo-todo, era uma vida diante de câmeras ou sobre um palco... Todo, todo o tempo. Acordava e se maquiava logo depois de escovar os dentes, nunca tinha postura relaxada, nem tinha nas gavetas uma camiseta mais velha, dessas que a gente chama de roupa-de-ficar-em-casa. Mas o melhor mesmo era o apartamento dele, apezinho sala-banheiro-cozinha tornado em um legítimo cenário. Quase todas as paredes eram forradas pelos milhares de LP’s, todos com as capas aparentes; a única livre era coberta de vários quadros meio art nouveau. No chão, tapetes pretos muito grossos, porque como ele não tinha cadeiras mas um monte de puffs, o chão precisava ser confortável. Num dos cantos ficava a cama turca, separada por um biombo de papel translúcido. Mas o melhor era o teto, todo preto, com alguns trechos de poemas e letras de música pixados em prateado, poemas que muitas vezes a própria Livi tinha apresentado – exporadicamente ele mudava o teto todo. A iluminação era baixa e focada, feita toda por três lâmpadas, uma azul, uma vermelha, uma verdade; tinha também uma luz negra, mas era ligada em situações bem específicas. Os únicos móveis eram uma estante de livros, um piano pequeno revestido por retratos de antigas estrelas do cinema, araras pras roupas e dois raques, um pra vitrola e outro pro computador super moderninho e cheio-de-coisa.

Esse micro era assim: se a vida do Sea era o filme, o micro era o estúdio e isso-assim, literalmente falando: acontecia que ele participava de um tipo diferente de reality-show que estava disponível em um site; o Sea deixava uma webcam ligada, se filmava e mandava por email pro Marcos, que editava as imagens e as músicas pra depois jogar no ar. As pessoas pagavam um preço pequeno pelo por uma senha de acesso ao site e entravam quando quizessem, mas o que a deixava a Livi pasma era o número absurdamente alto de acessos: tinha gente pra-cacete que pirava em ver o Sea.

Mas aí era que morava a questão, porque não se tratava de ver o Sea, mas de acompanhar e interagir com um ser que se chamava Spaceboy, uma criatura muito sexy, muito fora do comum, muito intrigante, cujo rosto não se podia distinguir por causa dos jogos de luz e sombra e brilho da maquiagem, alguém de olhos fluorescentes e pele azul-brilhante que vivia num tipo de base espacial de observação de pessoas da terra, com as quais se relacionava (a Livi tinha sido uma). Ele escrevia reflexões sobre elas, – tinha um blog vinculado aos filminhos – reflexões de todo tipo, sociais, psicológicas, políticas ou só estéticas, uns ensaiozinhos despretensiosos.
Tinha sempre um momento do dia em que ele teclava, de câmera ligada, com os internautas porque sendo o site uma coisa bem interativa, ele ouvia opiniões, aceitava sugestões e satisfazia a curiosidade ou o voyeurismo de quem estivesse online. Pois-é, as pessoas pediam pra ele fazer algumas coisas às vezes, coisas referentes a sexo, mas o Sea era um cara de bom-gosto e tratava de ser mais sugestivo que pornográfico, ele só insinuava.

Era aí que a questão da beleza da Livi entrava: tendo ido morar com o Sea ela acabou se tornando mais um personagem. E ao cabo de um tempo, nunca mais ela saiu do banho sem passar um creme que dava tom perolado pra pele, passou a se maquiar como ele, mesmo pra estar em casa e chegou até a se desfazer das roupas mais confortáveis... Era disso que lembrava agora que procurava e não achava uma blusa largada, perfeita pra malhar.

Então ele era assim, personagem e diretor e escritor e obra de si mesmo e ia fazendo da Livi uma coisa assim também, exposta ao público, como toda arte deve ser. E estava sendo divertido... Pelo menos por enquanto. Faziam cenas que ficavam muito bonitas depois de editadas, várias delas releituras de filmes ou videoclipes. Uma das preferidas da Livi era a releitura de uma cena erótica do filme 1984, que além de ter ficado com uma estética muito bem cuidada, deixou a Livi louquinha de desejo – ela nunca tinha se sentido tão à vontade em ser observada. Nesse site ela era outra pessoa também, era a Panther Princess e já tinha até alguns fãs.

Mas Panther Princess só fazia algumas poucas aparições na estação do Spaceboy e nunca falava ao vivo com ninguém. Acontecia que não era sempre que o olhar do outro servia como motor pra ela, não era sempre... Não mesmo.

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