A Lívi não gostava muito de falar, sempre preferiu escrever. Bom, na verdade, não se incomodava em falar, mas era mais dada a escutar mesmo. Quando ficava triste, mas triste de não ter jeito, preferia ir pra Pasárgada que se abrir com um amigo e era o que fazia em geral. Foi por isso que se sentiu bem nua e descascada quando o Sea perguntou dos pais dela. Ah, ele sabia que o pai ia mal de saúde, preso no hospital e que mãe ela não tinha. .
"Sei sim, pequena, mas nem sempre deve ter sido assim, que você não é... Como é que se diz? Filha de chocadeira. O que tinha antes?" Nua, bem nua, como nunca se sentiu com ele antes. Nua na chuva. "Venus naked on my chains, this is the way I want you, hahaha!". Sorria esperava a narrativa dela, não desviava os olhos, os olhos ostensivos. E ela, ah, ela tinha de obedecer. Estava bem então, deixava... Certo, vamos-lá, era uma vez uma mulher muito bonita e muito mimada. Ela viveu num castelo encantado nos Jardins durante toda a vida, esperando um príncipe que a levasse para conhecer o mundo. Daí veio um príncipe que não dispunha de muitos fundos pra manter essa princesa, mas ela ficou num fogo danado quando viu o hippie louco e foi logo fugindo de casa. Como ele era bem duro e ela nem sempre ficava alegre com isso, o jeito era encher a cara de droga e eles tomavam ácido feito condenados. Nem precisava dizer que os pais da princesa ficaram putíssimos com essa história toda. Daí veio a Olívia... Daí a aventura da princesa teve que durar mais que o necessário e, quando a vida virou rotina de dona-de-casa-de-classe-media-baixa, vixi, daí perdeu a graça. Ela pouco queria saber da filhinha e estava de saco cheio com o príncipe (que tinha uma blábláblá bem chato sobre política e revolução) e com as drogas, queria retomar a vida de onde a tinha deixado. Fugiu de casa outra vez, pediu ajuda aos pais, queria ir pra França e deixar a criança em algum colégio interno muito bom... Mas nesse meio tempo, a Olívia já era Lívi e usou a pouca autonomia que tinha pra dizer que não largaria o pai sozinho - ele se tornou muito depressivo depois da separação. A mãe insistiu, mas como não teve jeito, ficou num veneno tamanho que nunca mais deu notícias que não fossem por escrito e assim, a Lívi se acostumou a ler a mãe - até preferia no final. Quanto ao pai, era tudo de bom, só não era pai, fez o melhor que pôde e deu todo amor que tinha pra dar. Mas por causa dessa coisa de ele não ter jeito com criança, a Lívi não teve muitas referências de mundo infantil, já lia Machado de Assis e Kafka aos onze anos, conhecia qualquer coisa de teoria econômica e cresceu ouvindo MPB e rock'n'roll de todos os tipos – o único disco infantil que teve foi Os Saltimbancos. Ela sempre gostou muito do pai e, embora ao lado dele se sentisse bastante sozinha, era a única família que tinha, e então, estava bem. Também não teve muitos amiguinhos porque mudava de escola com frequência. Isso era meio chato, mas fazia restar muito tempo pra ler - o pai sempre dizia que nenhuma companhia superava um bom livro.
"E você fez Letras por causa do seu pai?" Em parte sim. Na verdade tinha gosto por leitura por causa do pai e estudou Literatura por gostar de ler... Mas achava que não tinha a ver com o fato do pai ser professor, isso não.
"Mas e paixão? Você nunca teve muita vontade de ser qualquer coisa diferente, sei lá... Cabeleireira, médica, rockstar, ginasta, essas coisas que a gente quer quando é criança?" Ah, sabia lá... Sempre preferia deixar que as coisas acontecessem e ver onde se encaixava melhor. Porque quando queria ser coisas diferentes, essas coisas estavam no plano do impalpável, sabe? Já quis ser sereia, ninfa, anjo... Já quis ser homem também... .
"Mas isso é natureza, a gente não escolhe..." A gente nunca escolhia nada... Nunca. "Oh, I don’t think so! Tsctsctsc! Eu acho que escolho quase tudo que tem a ver comigo". Pois que achasse, isso era o que dava Vida pra vida da maior parte das pessoas. Mas e a vida dele? "Como foi minha vida antes de você aparecer? Sei lá. Não me lembro bem de muita coisa, as drogas acabaram com a minha memória. Mas eu já tive que morar em vários países diferentes e minha mãe foi bem puta e eu não tenho pai e estudei bastante mas nunca me formei em nada e já transei com mais gente do que o céu tem estrela e tenho mais anos nas costas do que parece e... sim, eu já sei português o suficiente pra nunca mais ter de falar inglês, mas não paro pra não perder meu charme de gringo – brega né?... Deixa ver... O que mais é importante? Ah, sim, eu gosto de gatos... and this is all I have to say about it". A Lívi riu, gostava do filme a que ele fez referência mas achou a biografia muito sintética... Queria saber outras coisas. Tinha um diário? "Sim, mas não vou te dar. E não vou te contar mais nada também. Vai ter que me aprender na prática, se quiser" e ela queria sim, queria ver a vida dele acontecendo, gostava de tudo sobre ele, até de quando ele a deixava sem ação ou muito embaraçada. Mas não disse nada disso, estava certa de que ele sabia. "Well, you know, Liv, you're good, you're really good... and I don't know why". Não sabia por que? Não tinha nada que saber, ela era assim, todas as garotas-olívia eram assim. "Nada, tem mais coisa aí, vai ver como tem".
"Sei sim, pequena, mas nem sempre deve ter sido assim, que você não é... Como é que se diz? Filha de chocadeira. O que tinha antes?" Nua, bem nua, como nunca se sentiu com ele antes. Nua na chuva. "Venus naked on my chains, this is the way I want you, hahaha!". Sorria esperava a narrativa dela, não desviava os olhos, os olhos ostensivos. E ela, ah, ela tinha de obedecer. Estava bem então, deixava... Certo, vamos-lá, era uma vez uma mulher muito bonita e muito mimada. Ela viveu num castelo encantado nos Jardins durante toda a vida, esperando um príncipe que a levasse para conhecer o mundo. Daí veio um príncipe que não dispunha de muitos fundos pra manter essa princesa, mas ela ficou num fogo danado quando viu o hippie louco e foi logo fugindo de casa. Como ele era bem duro e ela nem sempre ficava alegre com isso, o jeito era encher a cara de droga e eles tomavam ácido feito condenados. Nem precisava dizer que os pais da princesa ficaram putíssimos com essa história toda. Daí veio a Olívia... Daí a aventura da princesa teve que durar mais que o necessário e, quando a vida virou rotina de dona-de-casa-de-classe-media-baixa, vixi, daí perdeu a graça. Ela pouco queria saber da filhinha e estava de saco cheio com o príncipe (que tinha uma blábláblá bem chato sobre política e revolução) e com as drogas, queria retomar a vida de onde a tinha deixado. Fugiu de casa outra vez, pediu ajuda aos pais, queria ir pra França e deixar a criança em algum colégio interno muito bom... Mas nesse meio tempo, a Olívia já era Lívi e usou a pouca autonomia que tinha pra dizer que não largaria o pai sozinho - ele se tornou muito depressivo depois da separação. A mãe insistiu, mas como não teve jeito, ficou num veneno tamanho que nunca mais deu notícias que não fossem por escrito e assim, a Lívi se acostumou a ler a mãe - até preferia no final. Quanto ao pai, era tudo de bom, só não era pai, fez o melhor que pôde e deu todo amor que tinha pra dar. Mas por causa dessa coisa de ele não ter jeito com criança, a Lívi não teve muitas referências de mundo infantil, já lia Machado de Assis e Kafka aos onze anos, conhecia qualquer coisa de teoria econômica e cresceu ouvindo MPB e rock'n'roll de todos os tipos – o único disco infantil que teve foi Os Saltimbancos. Ela sempre gostou muito do pai e, embora ao lado dele se sentisse bastante sozinha, era a única família que tinha, e então, estava bem. Também não teve muitos amiguinhos porque mudava de escola com frequência. Isso era meio chato, mas fazia restar muito tempo pra ler - o pai sempre dizia que nenhuma companhia superava um bom livro.
"E você fez Letras por causa do seu pai?" Em parte sim. Na verdade tinha gosto por leitura por causa do pai e estudou Literatura por gostar de ler... Mas achava que não tinha a ver com o fato do pai ser professor, isso não.
"Mas e paixão? Você nunca teve muita vontade de ser qualquer coisa diferente, sei lá... Cabeleireira, médica, rockstar, ginasta, essas coisas que a gente quer quando é criança?" Ah, sabia lá... Sempre preferia deixar que as coisas acontecessem e ver onde se encaixava melhor. Porque quando queria ser coisas diferentes, essas coisas estavam no plano do impalpável, sabe? Já quis ser sereia, ninfa, anjo... Já quis ser homem também... .
"Mas isso é natureza, a gente não escolhe..." A gente nunca escolhia nada... Nunca. "Oh, I don’t think so! Tsctsctsc! Eu acho que escolho quase tudo que tem a ver comigo". Pois que achasse, isso era o que dava Vida pra vida da maior parte das pessoas. Mas e a vida dele? "Como foi minha vida antes de você aparecer? Sei lá. Não me lembro bem de muita coisa, as drogas acabaram com a minha memória. Mas eu já tive que morar em vários países diferentes e minha mãe foi bem puta e eu não tenho pai e estudei bastante mas nunca me formei em nada e já transei com mais gente do que o céu tem estrela e tenho mais anos nas costas do que parece e... sim, eu já sei português o suficiente pra nunca mais ter de falar inglês, mas não paro pra não perder meu charme de gringo – brega né?... Deixa ver... O que mais é importante? Ah, sim, eu gosto de gatos... and this is all I have to say about it". A Lívi riu, gostava do filme a que ele fez referência mas achou a biografia muito sintética... Queria saber outras coisas. Tinha um diário? "Sim, mas não vou te dar. E não vou te contar mais nada também. Vai ter que me aprender na prática, se quiser" e ela queria sim, queria ver a vida dele acontecendo, gostava de tudo sobre ele, até de quando ele a deixava sem ação ou muito embaraçada. Mas não disse nada disso, estava certa de que ele sabia. "Well, you know, Liv, you're good, you're really good... and I don't know why". Não sabia por que? Não tinha nada que saber, ela era assim, todas as garotas-olívia eram assim. "Nada, tem mais coisa aí, vai ver como tem".
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