Tinha os olhos ardendo de tanto ficar com a cara no computador, mas não adiantava ir pra cama, panquecava pra lá e pra cá e nada de o sono vir, só aquele sono cretino que não serve pra dormir e só tira a concentração da gente. Dureza não conseguir dormir e pior ainda a razão da insônia: a falta da Livi, já não conseguia dormir sem ela. Ou seria que não conseguia dormir sabendo que ela estava trepando alucinadamente com o namoradinho dançarino? Ou pior-ainda, podia ser que ela dar pro outro ainda não fosse problema maior, podia ser que o problema maior fosse que ele, Jac, não estava junto. Mas não, imagina! Claro que não era isso, tinha ciúmes dela e pronto, era melhor não problematizar muito isso. Se bem que uma semana atrás tinha sonhado que ela estava no colo do freak mordendo os vários piercings das orelhas dele, ele com a mão por dentro da calça dela. Acordou tenso e excitado, sem saber direito o que pensar de si mesmo, teve até vergonha. Queria esquecer só por um minuto do quanto esses dois se queriam e se precisavam mas tava foda! Era o caso de rezar, só podia ser, não tinha mais o que fazer mesmo: “Vamo-lá, creio-em-deus-pai-todo-poderoso-senhor-do-ceu-e-da-terra porque ele vai ter o bom senso de me fazer desencanar dessa coisa toda e vai trazer a Livi de volta pra casa sem ela estar apaixonada de amor-de-pica nem nada... E que o-sangue-de-cristo-tenha-poder pra eu não ficar pensando bobagem sobre eles dois e gostar, deus-me-livre-e-guarde-meu-deus, e que ela volte logo pra casa pra eu ter um sono na-boa e que a gente seja feliz, em-nome-de-jesus-amém”. Mas a oração não estava servindo pra acalmar, talvez devesse acender um baseado pra abrir a alma pro contato com o divino... Ia bolando com calma, embora as mãos estivessem trêmulas e meio extenuadas de insônia... Opa! Barulho na porta, a Livi tava chegando, que-bom! Correu pra sala todo ansioso.
Oi, oioi! Tava bem ela? Cansada? Cansada da viagem? Desse a mala pra ele, desse um beijo, sentasse um pouco... Isso, desse um abraço pra matar saudade... Nossa, e quanta saudade dela, tava sem poder dormir desde que ela foi embora. Por que? Ah, não sabia... Mas achava que era falta dela dentro de casa mesmo (o Jac fica transtornado quando sua rotina é quebrada de repente). Ele tava afim de fumar um agora, a Livi acompanharia? Sim? Ótimo, já tinha um pronto até. Queria água, alguma coisa pra comer? Foi buscar água antes de ela responder, trouxe junto o baseado, o isqueiro, um incenso. Acendeu, tossiu um pouco, ofereceu, ela deu um pega e também tossiu. Deu água a ela, queria mais alguma coisa?
“Não amor, quero nada. Só fumar mesmo, tomar um banho e capotar”. Ah, mas não tinha o direito de dormir não-senhora! O Jac estava ardendo de saudade, precisava dela de qualquer jeito – punha um dos dedos dela na boca, pra ser mais eloqüente. Ela tirava devagar: “Deixa pra amanhã, amor, tou cansada...” Tava cansada da viagem, era isso? Ela já ia fazendo manha, olhava de baixo pra cima com os olhinhos muito grandes, fazia biquinho, jeitinho fácil de fazer a gente gostar – “É amor, tou cansada...” – mas não encarava quando disse isso, escondia a carinha no peito dele... Porque tava mentindo, claro, a dissimulada não sabia dissimular direito. O pior era que isso virava quase uma ofensa à inteligência do Jac, ela devia saber que ele a conhecia o bastante pra saber quando mentia. Sentia-se admirado agora, admirado e com alguma outra coisa estranha que nunca havia sentido antes, uma energia quente que percorria o corpo depressa, nascendo no vão das costelas pra se concentrar nas têmporas, dava até um certo peso na testa, coisa ruim mesmo. E ela ali, toda aninhadinha nos braços dele, parecendo bichinho recolhido da tempestade – o Jac sempre achou a fragilidade uma das piores armas de manipulação. Estava cansada mesmo? Cansadinha de viagem? Coitadinha! Queria banho? Fossem juntos pro banheiro então, daria um belo banho nela pra não ficar cansada – foi conduzindo devagar, até que ela ficasse presa entre seu corpo e a parede, ela já estando levemente tensa e meio que imobilizada, sem ter o que fazer se não deixar que as coisas fossem acontecendo.
E iam! O Jac pressionava o corpo dela, pegava devagar aqui e ali com metodologia digna de coronel nazista e ela gemia baixinho: “Amor, pára, vai... Amor... Não, amor, não faz assim...”, querendo dizer pra ele por-favor não tocar por baixo da saia, que era exatamente o que fazia, nem por prazer de carícia mas mais pra checar o corpo dela mesmo, curiosidade mórbida. E estava úmida, inchadinha, quentinha... A calcinha toda úmida, que vaca! Vaca sim, mil vezes vaca! Imaginou imediatamente o corpo dela engatado no do... Nossa, deu inveja dele, inveja e raiva, ela dava pra ele livremente, sempre quis, nunca seria de má vontade, nunca! Molhada do jeito que tava devia ter ficado com ele a noite toda, até cinco minutos antes de chegar em casa, sem camisinha, sem porra-nenhuma, puta, puta, puta! Tava cansada disso, na verdade, claro, né! Claro! O-caralho que tava cansada de viagem! Nossa, precisava fazer ela falar disso, falar tudo o que tinha acontecido, precisava! Só de raiva! Ah, ela ia ter vergonha, ia se acanhar, mas ia falar sim. Ia se terrificar, se mortificar e se culpar e até chorar talvez, mas ia falar, de-qualquer-jeito! E ele? Tinha que se controlar, se não adeus-vingança. Tinha que manter o sangue na temperatura certa e segurar o coração muito firme nas mãos – nem sabia como ia fazer, mas ia. Certo, se preparava, respirava fundo, pensava no que dizer... Nessas horas era o caso de se fazer de cretino, de ser cínico e muito cínico! Dava início ao show: “Você não quer carinho, coelhinha? Mas tá toda excitadinha, olha só isso... Fala pra mim que ce quer, fala...” Ela fechou os olhos e prendeu a respiração, como se suspendesse a vida. Corava, tremia, era obrigada a permitir qualquer coisa porque simplesmente não estava em posição moral de recusar nada. E o Jac se sentiu tão brutalmente cruel nessa hora que teve gana de ser muito pior, mas não podia perder o controle, não podia. A coelhinha viesse, ia ganhar um banho bem bom... Não vinha? Então iria no colinho. Isso, boa menina! Agora tirasse a roupa... Logo. Bom, assim tava bom! Mas olha que coisa estranha, uns fiozinhos verdes tão fininhos no peito dela, o que era aquilo, sabia? “Amor, me deixa dormir... Por-favor, por-favor...”. Melhor tomar um banho antes não era? Pra tirar aqueles fiapos verdes... Nossa, verdes? Até reluziam na pele castanha dela... Ligou as duas duchas e direcionou os jatos sobre ela, enchia a mão de sabonete líquido e passava nela toda, depois, o sabonete íntimo, pra lavar direitinho. Ela respirava sôfrega, parecia estar chorando, mas não tinha como saber por causa da água que caía pelo rosto e levava as supostas lágrimas. Mas não queria nem saber. Estava bem de banho? Bem limpinha? Viesse pra toalha... Isso, cama agora. Ela não conseguia tirar os olhos do chão e era bem como a queria, atemorizada e humilhada, cadelinha!, ficava até mais atraente daquele jeito – estava admirado outra vez já não com ela mas consigo, nunca imaginou que sentiria o que sentia e que faria o que fazia. Mas era questão de direitos, não era? Ela estava com um débito muito feio e ia pagar sim-senhora, só-isso!
Deitasse logo! Mas olha-só-isso, estava chorando? Por que? “Eu tou com medo de você...”. Mas medo de que? – ria. Logo dele, que amava tanto... Tava escondendo alguma coisa? “Você tá muito estranho...”. Estranho ele? A coelhinha tava era viajando, magina! Estranho por que? “Olha, Jac, eu quero ficar sozinha, eu quero dormir, eu tou com sono, eu viajei a noite toda, eu não dormi...” E não tinha dormido por que? Podia explicar direitinho? “Porque não, droga” – soluçava, chorava que nem criancinha, não devia agüentar a pressão muito mais – “não tive sono, Jac, mas que saco!”. Mas o Jac não achava que era isso e achava inclusive quem estava estranha era ela. Tinha sido tão meiguinha no telefone, por que tava daquele jeito, deprimidinha? Não, nem precisava falar, o Jac tinha um ótimo remédio pra aquela magoazinha toda, ela só tinha que abrir as pernas e relaxar... “Jac, chega!” – gritava – “Pára com isso, eu já te disse que não quero, pára de falar assim comigo! Que é que você tem?” Ela estava dificultando a brincadeira, a essa altura já devia ter contado o que tinha aprontado. Mas pegava-nada não, o Jac podia fazer terror psicológico até a noite terminar e no dia seguinte inteirinho, seria sábado, teria mesmo o dia todo pra isso, teria a vida toda na-verdade. Mas queria que ela falasse na-hora, era melhor ser mais sugestivo: “Sabe, Livi, tou te achando estranha também, nem parece a minha coelhinha” – sorria e enquanto sentia a malícia inocular cada célula do seu corpo ia beijando o tornozelo da menina, que deixava... (deixava, ela sempre deixava, mesmo quando protestava, o corpo devia gostar e ela não, a vaca-louca) – “Conta pra mim enquanto eu te beijo, conta o que te aconteceu no Rio pra você estar assim, tão sensível... Conta, tudinho”.
Não, não contava nada e a resistência fazia o Jac perder a paciência. Não beijava mais, mordia, mordia forte as pernas, as cochas, pra machucar. Virava o corpo dela na cama, arranhava as costas, virava de novo, cravava as unhas na cintura, apertava os ombros e ela tremia. Deixou que as mãos seguissem involuntárias até o pescoço, fechou um colar de dedos de aço naquele pescocinho estreito, mas que coisa gostosa, matar seria tão fácil, só um empurrão no queixo e cabou-se a Livi! Mas não, mas não. Não mataria não, e se tivesse desejo de matá-la outra vez mais tarde? Não poderia porque ela já estaria morta, era melhor deixar viver e matar um pouco por dia...
O Jac refletiu um único segundo no pensamento que acabava de ter e se sentiu um verdadeiro animal. Mas não era um selvagem, era um homem, meu-deus-do-ceu, o que estava fazendo com ela? Não podia machucá-la, era uma garota, precisava sair de perto, tinha que agir como adulto e recuperar a humanidade onde quer que ela estivesse. Soltou de vez o pescoço dela, sentou-se na cama, estalou a coluna – estava a ponto de ter um ataque cardíaco de tensão. Olhou novamente pra ela, agora sentada abraçada aos próprios joelhos, nua, parecia muito menor do que era de fato.
Escutasse, o jogo havia acabado, ela ganhava. Tava bom assim pra ela? Fim de jogo. Baixasse as cartas agora, ela sabe do que se falava. “O que você quer saber, hein? Quer saber o que? Quer ouvir o que?” Não brincasse que ele não estava pra isso, era capaz de abusar do corpo dela da pior maneira possível e tirar sangue até matar. “Então tá, João, pode começar, eu não tenho nada pra te... relatar. Pode vir. Só não me sangra até a morte não, não quero morrer antes do meu pai”.
Agora sim, agora não tinha mais nada o que fazer. Então era isso, nada a explicar com relação àqueles cabelos verdes colados entre os peitos dela? “Mas que porra é essa que você quer saber, meu-deus! Jac, pelo-amor-de-deus, o que você tá fazendo com a gente? Ce quer ouvir o que? Que eu tava com outro cara? Pra que? Foi você que me disse pra ser discreta, tá querendo o que agora?”. Ela tinha razão... Tinha tanta razão, que dava raiva. Pois-é, ele não estava sendo justo. Não estava. Definitivamente não estava e não gostava de ser injusto. Justo seria se a deixasse ir, era o que ela queria, devia deixá-la ir embora pra sempre então. Não queria, queria que ela chorasse e se desesperasse um pouco mais, mas ela não era brinquedo seu, era mulher e sua-mulher. Precisava pensar, pensasse, pensasse... porque agora-a-pouco não tinha pensado e esteve a ponto de violar o corpo dela, coisa de gente bárbara! Pensasse... pensasse, Jac... Não conseguia mais, simplesmente não conseguia mais. Arremessou o porta-retrato com a foto do pai, que ficava na cabeceira, contra a parede. Assustou com o toque da mão dela nas costas. “Jac, você tá com ciúme?” Não, não era isso, era que não sabia lidar com mulher, se fosse um cara já teria contado o que aprontou e tava tudo resolvido. “Tá mentindo, tá com ciúme sim” - falava mansinha, mas ele levantou o tom de voz novamente: “Tá, tá bom. Tou com ciúme... Tou fodido de ciúme! Tá satisfeita? Tá afim de que agora? De viver com ele? Vai lá! Vai ser feliz, vai! Vai lá, anda! Quer um help com as malas?” – e quem se encolhia agora era ele, completamente desmoralizado. Sentiu a cabeça doer e pânico, pânico de ela dizer que sim, que ia embora agora mesmo, e não sem razão, se o Jac estivesse no lugar dela faria isso mesmo. Mas ela abraçava em vez disso: “Jac, não precisa ter ciúme, eu não vou embora. Sério, amor. Esquece isso, olha pra mim. Não, amor, olha pra mim, eu sou tua... Tua tá? Larga disso. Você tá sem dormir, deve tar muito nervoso... Pára...” – e beijava, deixava a boca escorregar pelas costas dele, depois pelo pescoço – “Ce lembra da primeira vez em que disse que me amava? Tenta lembrar, eu sou a mesma. E eu te amo também. Deixa o resto pra lá e me abraça. Abraça e me olha, eu te amo, tá”. Nossa, amava depois de tudo aquilo, e era verdade, só podia ser porque ela não sabia mentir. Mas ele não tinha o que fazer com aquele amor agora, queria que ela tivesse ódio dele e não amor. Queria não ser ele mesmo.
Queria massagem nos ombros.
Queria que nada daquilo tivesse acontecido.
Queria ter mantido o controle.
Queria dormir.
Queria esquecer.
Meu-deus-de-céu, queria dormir até terminar a vida. Deitou-se, recebeu um beijo dela mas se esquivou do seguinte: “Livi, se a gente não dormir agora vamos ter um surto psicótico... Me ajuda a dormir”. Sim, ela ajudava fazendo cafuné que ele gostava, estavam exaustos, dormiram logo.
12 de dezembro de 2007
Ato 23
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário